segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Caravelas


Quem sabe lá, quem me diz
P’ra que encantado país
Navegam as caravelas?

Onde vão elas? Aonde?
Que aventureiro destino
Ou ideal peregrino
Seu rumo altaneiro esconde?

A minha alma é também
Qual caravela ligeira
Que não tem Pátria, nem rei…
Anda no mar à ventura

Como quem dono não tem…
Deixai-a, pois, ir na esteira
Do vosso rumo sem lei,
Caravelas da Ventura!...

Velas de sonho, enfunadas,
De quimeras carregadas
Dizei-me onde ides, dizei?!...

Parai um pouco… Esperai,
Que eu vou convôsco  também!
Nos altos mastros erguida
Minha divisa lá vai:

Um vermelho coração
Donde brota enrubescida
A rosa da ilusão…
Vamos então… Naveguemos,
Velas inchadas ao vento!
Levais quimeras e eu sonhos…
E com tal carregamento
Forçoso é que cheguemos.

…Se não chegarmos? Se a Morte
O nosso rumo nos corta?
Velas de sonho, que importa,
Que importa que naufraguemos?!...

Ter ilusões e perdê-las
No mar da Vida, sem calma,
É triste, sim… Mas não tê-las
Deve ser mais triste ainda!
Caravela da minh’alma
Tão leve, tão alta e linda,
Não tenhas mêdo!... Singremos.
Rumo à Ventura e à sorte!...

Fonte: Almanaque Bertrand (1940)
Texto/Autor: Branca Cruz
Foto da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A história do Zé Vicente


Condecorado pelos seus 47 anos na pesca do bacalhau

Ainda mal rompia a luz pelas talisgas da barraca de junco desunido e já o velho fazia ranger as grossas botas de água, no terriço batido no cómodo do lado. No saquitel estavam já o naco duro do pão, a sardinha amarelada pelo ranço, e por cima de todos os hábitos e costumes, a necessidade do ganha-o-dia.
- Eh! Rapaz Eh! Zé Vicente!
O cachopinho saltava lampeiro, enfiava os calçonicos, ia buscar os aprestos da pesca e corria atrás do pai que se sumira, como tragado pelas ondas, na volta do caminho.  
Sempre assim era, desde cachopo, a vida do Zé Vicente, filho e neto de pescadores, representante de muitas gerações de velhos lobos do mar, que dêsses   tinham-os, e dos melhores e mais honrados, o lugar da Fuseta: 1500 almas à deriva das ondas.
Não que só o mar enfeitiçasse os filhos da maresia. Nada. Também a terra, loira do sol e palhetada do oiro das areias que o vento refilão ás vezes carreava, era boa mãe de quem lhe conhecesse os caprichos e lhe quisesse prestar carinhos e afagos. Lá estavam, pois, para trás dos caniços, a nesga de terra, ventre aberto à semente do griséu, ao trigo e à cevada, às belas árvores de figos lampos, às romaneiras, às nespereiras que depois de muito bem criadas, davam bons frutos para a venda em Olhão ou até mesmo em Lisboa. Era certo que não constituía comércio de tamanha valia. Mas que havia de fazer o mulherio, além de limpar monquilho aos safardanas dos cachopos, enquanto os homens se iam de abalada armar o cêrco ou se aventuravam por mais longe, para a pesca do alto?    
Que ficassem, pois, as moças e as mais velhas no amanho da terra, que quanto mais trabucassem maior provento arrecadariam para bem da sua bolsa e das terras da Fuseta. Vinha-lhe o mar beijar os pés enterradinhos na areia que por sua vez afagava a quilha dos caíques em descanso. Pela praia à sombra do costado do barco, ficava-se o mulherio de paleio a consertar as redes, a amanhar o peixe, a salgar o carapau e o sardinhame. Mas tudo isso era só quando os seus homens, maridos e filhos, que Deus trazia sempre no bercinho das ondas suspensos por um fio, pescavam costa à vista. Porque se os homens se iam para longe de abalada, então era entregarem-se, à pele curtida pelo sol e pelo ar do mar, ao amanho da terra criadora. Sêcas de carnes linguareiras, uma malícia danada a aflorar-lhes aos lábios, carreavam o pão para a sardinha, alheias ao airoso do seu corpo, a pontear a terra. Êles, então, mudos de tanto solilóquio com as ondas, vinham de longe esfomeados da fome da sua presença, deitavam-se a arranjar prole, que era sempre maior e proliferava sempre no sagrado dever de assegurar a raça dos homens rudes e fortes da Fuzeta. Às vezes, o mar era traiçoeiro como os homens no amor e apanhava-lhes filhos e maridos, antes que o credo lhes chegasse á bôca. E, então, elas, viúvas, sem braços para a terra ou para o mar, abalavam para Olhão, iam para as fábricas da conserva, para a apanha do figo, faziam o enceiramento por conta de terceiros e por lá se morriam longe do burgo que as vira nascer.
///
Zé Vicente acabara nêsse ano os doze e não fôra ainda á escola que, nesse tempo as letras não davam, como hoje, pão à gente. Já desde o ano passado que se afoitara, mar dentro, a ensarilhar-se nas redes. Mas que havia êle de ficar a fazer na terra? Papo para o ar, a olhar para o tecto das canas descamisadas do milho, tecidas como as esteiras, a mal poder com as telhas, havia êle de se ficar em casa a contar as estrelas?
Não, que os remos, as velas, as redes, tudo isso se fizera para êle e para os filhos que viesse a ter. o mar tem esquisitices e não quer no seu convívio peles finas como as rosas criadas no algerós… E era lá, no mar, que grangeavam os homens o melhor do pé de meia com que iam fazendo progredir a terra, hoje até com escola e muitas casas de telhado de duas águas, postas a fôgo quantas barracas havia de junco.
Hoje, sim, todas de pedra e cal, pegando às casas suas nesgas de terra murada e um alpendre florido ou a vergar sob o pêso dos belos «dedos de dama».
Zé Vicente, esse que o diga, se bem que no trabucar não tenha grangeado coisa de jeito. Levou a vida, desde os doze, na campanha, ora na pesca de linha, de mão e «troli», no pesqueiro do alto, ora mais longe, pelos bancos da Terra Nova, à coca do bacalhau. De certo, essa foi sempre empresa mais arriscada. Mas que teme um homem, quando invoca a santa Graça de Deus? Fizera a primeira viagem aos doze anos, mas logo então magicara que também um dia, como os outros, mais homens, partiria para as terras desconhecidas, onde o mar é povoado de montanhas de gêlo. E foi assim que, aos dezassete, homem feito e pele curtida naquele corpo franzino, de nervo rijo e músculo de cabresto, partira para a viagem longa dos seus sonhos a cadeia de promessas em que prendera a Leandra Rolinha, na última vez que foram juntos à Senhora do Livramento.
À volta, tinham-se ficado pelo termo dos campos e, num ai, sem saber como aquilo acontecera, contraíram-se dívidas de gente honrada, dessas mesmas que se pagam na presença de Deus e à beira do altar. De certo, a Leandra não se temia deste adiantamento de carinhos. Ela sabia que o Zé Vicente, como todos de que havia memória e casavam adiantados, pagaria como devia as suas dívidas. Por isso na Fuzeta, não há filhos sem pais nem mães sem maridos. E, mal o demónio do sangue, aí por volta dos dezoito, se lhe alvoroça, se o moço não está em condições de ajuste de contas, não abandona a moça a confiança no eleito de sua amezedade e casa adiantada. Êles marcham depois para o mar a arranjar vida, e elas para o campo, a amealhar patacos para formar novo lar.
É um paragrafo aberto por baixo dos artigos da lei a que poucos se excusam e a que já as irmãs e os irmãos – que eram seis e dois dos quais lhe tinham ficado, com o pai, pescador do alto mar, sepultados muito longe da costa, durante a faina da pesca – não tinham podido negar-se.
Tudo isto porém, se perde já na memória do velho lobo do mar – 66 anos de vida, 47 afeitos às viagens à Terra Nova, mais 17 na pesca fácil do cêrco – à cata da corvina, do carapau e da sardinha, ali à vista da costa – e mais dois à espera de contrato para nova viagem.
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Sessenta e seis anos, mais de 54 embalado pelas ondas, muito terá que contar Zé Vicente, calado e tartamudo, sem a loquacidade do José Rolão, seu compadre, ou o José Vicente Estrêla (Rila) seu genro!
Porém, que sabe êle de aventuras? Sempre metido no porão, no ofício de salgador, o mar quási lhe é estranho à vista. Nunca a Senhora do Livramento se esqueceu do seu destino ou de lhe acender a estrêla que o há-de guiar. Quando José Vicente não tinha mais peixe para salgar – há dois anos que não embarca mas nas mãos tem os sinais, as cicatrizes das feridas profundas que o sal lhe fez na carne!
- Deitava ao mar o bote e ia para longe tentar a sorte da pesca. Porque não era com os ganhos da soldada que havia de governar-se. Se tinha bom mar e o vento menos traiçoeiro, lá ia êle: botava o isco ao peixe que saltava à sua frente e o bacalhau fincava a dentuça. Se êle se morre pelo choco, pelas cagarras e tripas de cagarras e bombaleto, era só jogar-lhe a tiro de espingarda a lambarice…
Perigos? De que se lembra o Zé Vicente, homem e consciência calma, no meio do mar revolto? Quanto aos netos – hoje um deles é pedreiro, fugiu ao mar, que o patife fazia-o côr da cidra, revolvia-lhe o estômago, e um homem quere-se estranho a estas fraquezas. – lhe perguntavam: «Atão, vomecê não tem história a contar?», Zé Vicente, cabelo rapado aonde não é chino, abre a caixa do tabaco e logo se foge às conversas:
- Pois, que quereis que vos conte? A sorte é dura, o sal faz botar sangue nas mãos, no fim, a minha vida é igual às demais. Só uma vez tive lágrimas que não eram do ardor do sal, e que foi quando o ti Jaquim Fêgo teve de ser lançado ao mar com uma pedra no peito e um madeiro atado às pernas… Era um bom companheiro e morreu com uma rouqueira no peito, por causa de ponta de ar…
- E as ilhas do gêlo? Vocemecês não nas temem?
- Lá está o vigia para gritar: «Ilha de gêlo à prôa!» O Capitão manda logo: «Arriba p’ra bombordo!» Ou, então, mais sucessivamente para estibordo!... E logo o barco se safa do caminho que o gêlo toma, a deslizar sobre as águas…
A neta do Zé Vicente, doze anos de cabelos côr de estrigas do trigo, teme-se pelo avô:
- Se vocemecê um dia ia no bote e êle se lhe virava…
-poucas são as vezes que o salgador tem para sair. Por isso vós não tendes herança a esperar do velho Zé Vicente… Os companheiros vêm de lá com os botes todos os dias a abarrotar de pescado. O capitão olha, avalia a ôlho de pêso, e põe-no na conta de quem lho leva. Depois, é passar o peixe ao partidor de cabeças, ao torteiro que o abre, ao escalador e ao garfeiro que o estripa. São assim mesas tão grandes como a porte do Sado… põem-se todos em carreira, o peixe passa de mão em mão e aquilo vai que nem que fosse máquina. Na celha lava-se o peixe e o garfeiro leva-o então para baixo, ao salgador. Assim aberto, é empilhado com sal, até fazer quintais que chegam a ser sete mil…
///
E Zé Vicente, que nunca teve um naufrágio ou uma aventura, que em muitos anos de guerra só uma vez foi abordado por submarino, respeitoso das verdes e rubras côres do pavilhão, chupa o cigarro, alheio às falas dos moços. Êle pensa nos seus múltiplos problemas. Antigamente vinha de longada com o caíque a arrebentar de pescado do alto, atracava à Ribeira e era fácil negócio: por cada 30 cabazes de pescado, 3 pescados. Agora é tudo fisco, mais os grémios, mais as juntas… Depois vinha Abril ou vinha Maio, as empresas de Aveiro, da Nazaré e Afurada, do Pôrto e de Lisboa mandavam pelos homens da companha e contratavam por viagem. Cada lugre levava o muito de 36. Hoje aumentaram: 60 em cada arrastão, cada um com seu bote.
Também antigamente verdade que se dissesse, rendia menos a época. Por isso, armadores do Algarve se tinham ido abaixo: o bacalhau era uma coisa de nada, comida de pobres que os pobres mal pagavam. E Hoje? Aí estava: comida de ricos, comida que mal se comia, com os pescadores trazidos nas palminhas. Hoje, sim, que tinham baixado a juba. Porque êle bem se lembrava: ainda não tinham passado oito anos sôbre a sua prisão. Viera com todos os seus companheiros da Fuzeta, presos debaixo de forma, só porque êle e os mais se tinham recusado a ser contratados pela coisa de nada que o Grémio propusera. Assim também, não admirava que as verdades lhes entrassem pelos olhos dentro…
Zé Vicente deu um suspiro, mas atrás de umas ideias vêm outras, como bacalhaus ao isco de cagarras…
Que era isso de ganho, mesmo há oito anos, de um conto e pouco?
Hoje, botando contas…
E Zé Vicente botava contas: antigamente, aqui há trinta e cinco anos, as soldadas eram de 130 escudos e os dólares estavam a nove tostões. E era a dólares que o capitão pagava os mantimentos – carne às quintas e domingos, um doce de vez em quando – comprados em Boston e Nova York. (E aqui o Zé Vicente perguntava-se, até, porque motivo nunca descera na América e só uma vez pusera pé em rochas ermas da Terra Nova…)
Hoje, a soldada é de 2.870$00, mas o dólar está a trinta e cinco escudos… Era pouco, pois claro, mas uma coisa valia mais que a soldada e essa era a percentagem. Até cem quintais de peixe apresentado, recebiam mais vinte escudos por cada; de cem para cima vinte e cinco escudos; de 150 para cima, trinta e cinco e, de duzentos a mais, cinquenta escudos por quintal. Claro que aos duzentos quintais poucos chegavam e, com eles, ao prémio do Grémio – 300 escudos para quem apanhasse a meia tonelada. Pela média porém, bem podia dizer-se que um só homem, ao fim de uma viagem de seis meses, para além da soldada, já vinha a amealhar seus cinco contos e picos. Por isso muitos deles tinham feito casa de pedra e cal, botado redes novas, comprado mais uma geira de terra para cultivo.
E, depois, bem vistas as coisas, aquêle a quem Deus bafejara de sorte e todo o dia podia andar no bote à pesca, nunca na vida tinha tido tão poucas razões de queixa: festas de bênção no Tejo, os lugares embandeirados, ministros a acompanhá-los, eles todos num virote e nos discursos e agora, por fim, aquela grande roseta de oiro com esmaltes, suspensa de uma fita de seda, posta ao pescoço pelo Primeiro de Portugal.
Zé Vicente ergue-se impaciente. Tarda-lhe o aviso de Lisboa, a notícia de que está pronto o arrastão que o levará por todo o mês na senda dos companheiros. Irá ao mesmo tempo que o «Gilanes», sempre atento às chamadas e pronto para levar e trazer recados à família pelos fios e através do espaço…
Depois, Zé Vicente vai à arca buscar a caixa forrada de carmezim. Abre-a com jeito e fica-se a olhar as estrêlas da Ordem do Mérito Industrial com que foram premiados os seus 47 anos de viagens. Cada raio de oiro parece que é como se fosse uma das suas cicatrizes. Mas, bem confessado, Zé Vicente pode dizer como gostou de se ver falado e retratado nos jornais. Então, fecha o estojo e suspira, fazendo-se modesto:
- Isto não vale de nada. Eu vos digo, antes me dessem aumento de pensão, 30 mil reis por mês que valem hoje? E 66 anos de mar pesam nos ombros. O máximo 57… O Govêrno devia dar-nos reforma...
O Fangueiro, o Lelo, o Páscoa, o Paleiro, o Sabino, o Panela, tantos da sua idade que já partiram e são evocados nesse momento de espera!
O Filinto tinha dado a sua última palavra remordida:
- Uma destas! Só as calças e a blusa!
Zé Vicente deitara água na fervura, enquanto o Sabino, do fundo das algibeiras, retirava três pães que poupara no almoço como senhor Subsecretário, para dar à companheira que viera da Fuseta à despedida:
- Home, atão, que queres, as botas são para os cachopos da escola…
Zé Vicente sorri:
- Lá se vão 500 escudos que é quanto valem as botas de cabedal…
Depois, poisa os olhos no Oceano… Para ali ficará agarrado à medalha, a ruminar saudades, olhos fitos na padroeira que uma vez mais há-de ir solicitar para sua protectora.
E, dos olhos. Pelas rugas profundas, corre-lhe uma lágrima silenciosa e quente, de dor que não se exprime…

Fonte: Revista Ver e Crer nº2  (1945)
Texto/Autor: Manuela de Azevedo
Foto da Revista
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

As Naus das Descobertas


 Tinha sido um verdadeiro sufoco, ela na rua e de repente a pensar: “esqueci-me das chaves e do telemóvel em casa”.
A quem pedir ajuda, e como? Mesmo com cabines telefónicas nos passeios e moedas nos bolsos, desde que se inventaram os telemóveis que ela nunca mais soube nenhum número de cor, está tudo na memória, ela a viver pela memória de uma máquina, ao que isto chegou.
Mas foi sufoco breve, felizmente não estava longe de casa quando deu pela falta, e pôde voltar atrás e entrar no café, que desde sempre guarda uma cópia das suas chaves para uma qualquer emergência. Como esta.
Ainda bebeu uma tranquila bica antes de voltar a casa para buscar o que esquecera, meditando, como sempre em ocasiões semelhantes, na dependência em que todos vivemos de máquinas e tralhas afins.
Vem-lhe à memória o tempo longínquo em que o primeiro telefone móvel entrara lá em casa. Uma maravilha da técnica. Tirava-se do descanso e podia-se levar pela casa toda, e falar estiraçado na cama, ou na sala, ou na cozinha, enquanto se mexia a sopa.
Tinha sido o filho quem mais vibrara com o objecto. Agora podia enfiar-se no quarto, sem dar cavaco a ninguém, e passar horas com as suas diversas namoradas.
Preocupava-a aquele filho, sem nunca pegar num livro, naquela casa onde eles estavam por todo o lado e onde ninguém podia passar sem eles. Ninguém, menos ele, claro, que pelos vistos passava mesmo muito bem, porque a verdade é que tinha boas notas e não chumbava. Mas ler não era o seu passatempo favorito. Por isso lembrara-se do ar de espanto que fez no dia em que ele lhe perguntou:
- Mãe, onde estão ‘As Naus’?
Nem percebera
- Onde está o quê?
- ‘As Naus’, mãe. Aquele livro do Lobo Antunes.
Não quis mostrar demasiado o seu espanto, o rapaz ainda era capaz de se arrepender, e tirou-o da prateleira. O filho pegou no livro, enfiou-se pelo quarto, fechou a porta e lá ficou.
Nos dias seguintes ‘As Naus’ lá continuavam na mesa-de-cabeceira. Um dia achou por bem voltar a pô-lo na prateleira.
À noite o filho, meio zangado:
- Mãe, qu’é das ‘Naus’?
Pelos vistos a leitura do romance entusiasmava-o.
Um dia arriscou:
- Estás a gostar das ‘Naus’?
Foi a vez de ele a olhar espantado.
- Das ‘Naus’?
- Sim, do romance do Lobo Antunes.
- Ah!!
Foi um enorme “Ah”, que se devia ter ouvido pela casa toda.
Depois foi buscar o livro e abri-o na primeira página, onde se viam uns números escritos a lápis.
- Tás a ver , mãe… É que há dias, quando tu andavas a fazer a arrumação dos livros, a Teresa ligou e eu precisava de tomar nota do número do telefone dela. E isto era a única coisa que eu tinha à mão. Como nunca sei o telefone dela, preciso sempre de ver aqui.
Ainda pensou em dar-lhe uma agenda – mas desistiu. Pegar num livro era bem melhor. Até podia ser que ele se entusiasmasse e  passasse da primeira página.
Como de resto veio a acontecer, não por causa de ‘As Naus’ mas por causa de uma namorada que lhe disse:
- Ou tu lês o que eu leio, ou nada feito.
Casaram, são muito felizes, têm 5 filhos.
(‘As Naus’ continuam com o número de telefone escrito a lápis, já um bocado sumido, que os anos não perdoam.)

Fonte. Revista Activa
Texto/Autor: Alice Vieira
Foto da Net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Renascimento


Venha, após tanta lágrima bebida
E tanto fel provado, a dôce e branda
Alegria, em que a murcha flor se expanda
Do sorriso, e eu de novo surja à vida!

De novo em festas, gárrula e florida,
A alma se rasgue inteira – ampla varanda
Escancarada de uma e outra banda
Ao fresco e à luz, de alegre sol batida…

Parta a loisa ao sepulcro que a devora,
E, livre assim dessa mortal tristeza,
Desfeita em hinos, vá pela floresta…

Vá pelo mar… vá pelo azul  afóra…
Derramando por tôda a natureza
O pouco de ilusões que ainda me resta.

Fonte: Almanaque Bertrand (1940)
Texto/Autor: Raimundo Corrêa
Foto da Net
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quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Ar livre


Ar livre, que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!

Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte…
De par em par, pois então?!

Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)

Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Fora do ventre da mãe,
Desligado do cordão!

Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Miguel Torga (Do Livro «Cântico do Homem)
Foto da Net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

terça-feira, 23 de julho de 2019

Ritornelo


Claro dia. Um raio de sol baixava em frecha sobre a torre. A frontaria da Ermida e as naves fulguravam douradas. Soava docemente no ar sereno o estribilho de uma cantiga, muito vago, mas quem conhecia o tom compunha a estrofe. Era a moda dos «Olhos negros». Começava assim:

«Deus do céu, Senhor meu Deus!
Que olhos negros tão fatais…

E retomava:

A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos iguais…»

O Velhinho, voltando a cabeça, já encontrou o olhar meigo da velhinha. Sorriam. E a cantiga sempre ao longe, no frescor matinal dos campos.
- Quem será? – Indagou a velhinha, agitando a cabeça dentro do bioco. – Quem cantará?
O velhinho encolheu os ombros, sorrindo, acenou balançando a mão trémula na direcção do campo; e suspirou:
- Vai para oitenta anos!
- Oitenta anos! – Disse a velhinha sem tristeza.
- Lembras-te? Ainda não eramos noivos…
- Ainda não eramos.
- Faláramos somente, uma ou duas palavras no decorrer do serão. Vestias uma saia de ramagens e trazias uma rosa vermelha no corpete.
Encolheram-se, baixaram as cabeças.
Por fim o velho disse:
- Fizeram-me cantar… improvisei.
Olharam-se e as pupilas quase extintas tiveram um relâmpago de malícia.
- Fingiste não perceber – disse o velhinho, raspando a terra com o cajado.
- Bem que percebi.
Calaram-se e a cantiga, mais próxima:

A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos iguais.

- E não tinha – disse o velhinho.
A velhinha sacudida pelo riso, foi-se levantando tremulamente.
- Onde vais?
- Quero ver quem canta. Anda ali pelas terras de trás. A voz é de moço.
- Quero ver também.
O velhinho ergueu-se, levando a mão em pala à altura dos olhos.
- É um rapazola. Eu não disse?
- Vai carreando. É Carreiro. Quem será?
O velhinho por sua vez encolheu os ombros, sempre a olhar, mudo de enternecimento!

«A própria Virgem Maria…

Disse no estribo o cantador. E o velhinho, muito baixo, passando a mão pelos ombros da velhinha, atraiu-a docemente e terminou a quadra:

«Não tinha uns olhos iguais».

Sentaram-se calados. O tom da cantiga foi morrendo ao longe e o silêncio caiu, apenas interrompido pelos chilros da passarada.
Subitamente a porta da igreja abriu-se de par em par e o vigário, assomando na soleira, não conteve um grito de indagnação:
- Eh! Corja!
Os velhinhos estremeceram e apartaram-se.
- Então, que é isto? Aos abraços aqui diante de Deus!
Vendo, porém, a figura do velhinho e o rosto encarquilhado da velhinha, desatou a rir, andando com o olhar de um para o outro.
- Pois ainda!...Ora sim senhores!
Olhem que já lá vão velhíssimos anos!
Até me parece que vocês casaram por aí, ao ar livre, à sombra das árvores. As pedras da Ermida dormiam ainda na rocha de onde vieram. Não se me dava jurar que foi o próprio Deus quem vos casou, porque não havia padres nesse tempo… E desatou a rir…
Eh, eh, eh! – Fez o velhinho… - olhe que somos da mesma idade, reverendo. Bem bons anos, bem bons anos!... O sr. Vigário era um rapaz e foi o primeiro casamento que fez.
E o vigário, dando a mão a beijar, sempre a rir:
- Pode ser – disse – mas, já me não lembra… - E, batendo de leve no ombro do velho:
- Mas então que foi isso hoje? …
A manhã, o bom sol ou as travessuras dos pássaros, porque andam delirantes, os patifes?… Que foi isso? E para a velhinha: Hein, velhota, que foi?
- Foi a cantiga do bom tempo, senhor vigário – disse o velhinho, estalando os dedos. – Uma cantiga do bom tempo.
- Uma cantiga que ele fez aos meus olhos, quando noivo… - disse a velhinha, baixando a cabeça e torcendo as franjas do chaile; e cantou baixinho:

«Deus do céu, Senhor meu Deus…

E o velhinho risonho:

«Que olhos negros tao fatais…

- Ora! Não conheço eu outra coisa!
- Exclamou o vigário. – Por sinal que acaba com um formidável sacrilégio.
E os três, juntando as cabecinhas brancas, cantaram, como se balbuciassem um segredo para que os santos, lá dentro, não ouvissem:
«A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos iguais…»

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Coelho Neto (Do livro «Baladilhas»)
Foto da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sábado, 15 de junho de 2019

Soneto


Abri meus olhos ao raiar da aurora
e parti. Veio o sol e então segui-a…
a sombra, que eu julgava guiadora,
a minha própria sombra fugidia.

E foi subindo o sol; ao meio dia
escondeu-se-me aos pés a sombra; agora,
se volto a olhar onde passei outrora,
vejo a seguir-me a sombra que eu seguia.

A gente é o sol dum dia; sobe, avança,
passa o zenite e vai, na imensidade,
apaga-se no mar, onde se lança…

e a vida é a própria sombra; meia idade
somos nós que a seguimos e é – esperança;
depois segue-nos ela e é – saúdade.

Fonte: Almanaque Bertrand, 1940
Texto/Autor: Fernando Caldeira
Foto da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

quinta-feira, 30 de maio de 2019

A escolha



Adélia tem 32 anos. É magra, tem cabelo escuro, liso (o que é muito importante porque eu passo a vida no cabeleireiro…) veste-se bem e, numa festa, Adélia nunca deixa de ser observada. É bem informada, curiosa e sai algumas vezes à noite. Agora menos.
Adélia junto dos amigos faz algumas caras tortas. E eles junto dela, também. Até mais do que ela. Porque os amigos acham que a Adélia tem um feitio difícil. Mostra-se impaciente, enfurece-se com pouco. Contesta tudo o que conquista. Há um amigo que diz que a Adélia parece precisar de um orgasmo. É como se estivesse permanentemente naquela tensão – à beirinha de o conseguir, mas depois porque talvez conteste o próprio orgasmo) não o atinge e, claro, fica furibunda. Ela é assim sempre. Menos quando bebe. À noite quando sai e se enfrasca, Adélia parece outra mulher: dança e abraça os amigos e namorisca os desconhecidos. Nestas poucas horas de folia, é adorável. O problema, mesmo, é levar com ela o resto do tempo…
Aconteceu há uns tempos eu e a Adélia estarmos interessadas no mesmo rapaz. Mas não sabíamos.
À partida ela tinha mais hipóteses: a beleza natural dela, os cabelos soltos e a magreza que se leva debaixo do braço eram vantagens. Perante este quadro, e quando me apercebi de que ele olhava mais para ela, recuei. Caramba pensando bem, aquele rapaz só me iria trazer problemas. Convidei ambos para o meu aniversário e durante a festa conversaram muito. Mas eu, que ia espreitando os dois, via muitas vezes na cara dela a tal tensão. Não estaria ela a conseguir atingi-lo?
Durante uns dias nada soube dos dois. Mas quis o destino (é assim que se diz, não é?) que eu e ele nos cruzássemos de novo. E quando nos cruzámos, conseguimos alcança-lo magnanimamente. Sim o orgasmo. Embora a minha tensão tenha vindo depois quando descobri que me estava a apaixonar… (mas há riscos que vale a pena correr. Estar apaixonado é o melhor deles).
Eu e o rapaz passámos a ter um relacionamento intenso, mas não assumido. Adélia era por isso uma sombra. Um orgasmo que tinha ficado por conseguir. Iria ela insistir? Ou seria ele? São estas dúvidas que consomem uma mulher. Não é o conflito israelo-palestiniano… Eu e o rapaz fomos quase felizes durante algum tempo. O “quase” aqui quer dizer muitas chatices também. Mas isso era matéria para outra crónica. E eu quero poupar-vos. O que interessa hoje é perceberem que a beleza da Adélia não era tudo. Não foi. Não é, Adélia. A beleza ao contrário do que se dizia a música dos Rockivarius, não é fundamental. (Pobre Cristina, que levou com este refrão tantas vezes nos anos 80…).
Um dia ele disse-me que tinha ido jantar com ela. E eu estremeci. “Não se passou nada”, garantiu ele. “Faltava-lhe chama.” Depois do susto, estremeci mas de prazer, ficando com aquela serenidade que dura pouco, mas que é tão boa. A serenidade dos corpos cansados. Coisa que talvez a Adélia não conhecesse.
O ponto desta crónica é perceberem que uma mulher interessante é mais bonita que uma mulher cuja beleza não suscita dúvidas. Eu sei que a minha beleza levanta muitas questões. E prefiro assim. Prefiro que me conheçam e se deixem conquistar sem perceber como nem porquê. Entre a Adélia e a Cidália, porquê a Cidália? Ora bolas, têm de me conhecer!
As mulheres que vos perturbam são as que vos vão dar mais prazer. Isto é como a história dos homens preferirem as loiras mas ficarem com as morenas… Eu e a Adélia somos ambas morenas, mas a Adélia não perturba. Enche só a vista com a sua beleza flat.
Eu adoro perturbar rapazes bonitos com as dúvidas sobre o que vêem… Não é fascinante começar a gostar cada vez mais sem saber muito bem porquê?
Eu cá sei…
Oh God, make me good, but not yet!

Fonte: Revista Notícias Sábado
Texto/Autor: Cidália (cidaliadias@yahoo.com)
Foto da net

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segunda-feira, 8 de abril de 2019

Dali e Gala


Onde está Gala? Dalí acordou, sobressaltado, a meio de um sonho. Olhou para a sua cama enorme; ninguém. Levantou-se, deu uma vista de olhos rápida pelo quarto. Procurou depois pelas dezenas de compartimentos da enorme mansão. Onde está Gala? A sua amada Gala, a musa que inspirava os seus quadros, e mais do que isso, o seu sono. Onde está Gala?
Dalí abriu a janela do quarto. Meteu a cabeça de fora, olhou para a esquerda e depois para a direita. E sim, do lado de fora, colado á parede, um bilhete com uma mensagem.
Era um hábito de Gala: fugia e deixava um bilhete com pistas, ou algo mais explícito. Dalí leu o bilhete. Nele, apenas uma frase:

Encontramo-nos no campo dos pirilampos
                                                                  Gala

Dalí sorriu. Não era a primeira vez que Gala marcava encontro de noite no enorme, enorme Campo dos Pirilampos.
Era um jardim com uma área mui extensa, a perder de vista, localizada a quilómetros de distância; jardim em que inúmeros pirilampos faziam as suas trocas de luzes. Machos e fêmeas em grande actividade, que lembrava por vezes os faróis anunciando terra firme. Os machos pirilampos, esses, emitiam luz a um ritmo determinado, o objectivo era seduzir as fêmeas para acasalarem. Quanto mais intensa a luz mais as , fêmeas ficavam seduzidas. Luz, escuro, luz, luz, escuro. Mas havia um perigo para os pirilampos macho: uma outra espécie animal andava por ali, pelo jardim, e comia os pirilampos que detectava precisamente pela luz forte. E assim estava instalado o drama que Gala e Dalí adoravam. Para seduzir e fecundar a Fêmea, o pirilampo macho teria de produzir uma luz muito forte, a ritmos regulares; mas quanto mais produzia essa luz, mais perigo corria. Para Gala era a síntese perfeita e era isso que exigia a Dalí: que mesmo correndo perigo de morte, ele produzisse uma luz que a encantasse.
Dalí leu o bilhete e cumpriu o desejo de Gala.
Quando a noite chega, eis Dalí em pleno Campo dos Pirilampos, deitado, escondido, e com uma pequeníssima lanterna, lanterna de menos de um centímetro de diâmetro.
Conhecia o jogo que Gala exigia jogar. Pela luz se prova o amor – dizia Gala -, se uma fêmea não conhece a luz que o seu macho emite, algo está errado. E por isso de tempos a tempos, expressando um ritual de renovação do amor entre Gala e Dalí, os dois se sujeitavam àquele jogo perigoso.
Nessa noite escuríssima, sem o mínimo vestígio da luz da lua ou de luz de fonte humana, ali estava, pois, há muitos minutos, Dalí, deitado, tentando não respirar, com a cabeça virada para cima, e com as mãos em cima do peito, uma delas segurando a minúscula lanterna. Esperava pela chegada de Gala ao Campo dos Pirilampos, escondido – e apenas pela luz emitida tentaria que Gala percebesse onde ele estava.
O perigo residia nisso. Gala vinha com uma espingarda de caçador preparada para disparar sobre os pontos de onde partia a luz. Ela era uma caçadora de luz, como lhe chamava Dalí.
Gala ficava imóvel e calada durante instantes e assistia a alguns diálogos entre pirilampos – diálogos feitos de respostas luminosas ou dessa outra forma de silêncio que era a escuridão – e, quando os localizava, disparava. Nada era falso naquele ritual de renovação amorosa do casal, as balas eram verdadeiras.
Nunca matariam um pirilampo, mas se acertassem em Dalí tudo acabaria. Era um jogo perigoso, mas, apesar de tudo, com muitas hipóteses de dar certo: a luz que Dalí imitiria com a sua pequena lanterna seria reconhecível por Gala. Nisso acreditavam os dois.
Na primeira vez em que haviam celebrado este ritual, Dalí definira as regras. Dirigindo-se a Gala, e com a sua pronúncia forte, dissera:
-Matarás todos os machos e, por fim, ficará apenas um macho emitindo luz: eu.
Era este o programa do ritual: que, devido ao som das balas, todas as luzes de pirilampo fossem desaparecendo (sim, dizia Dalí: os pirilampos também têm medo, quem não tem medo?) até que ficasse uma única luz: a produzida por Dalí. Depois, livres de qualquer competição, macho e fêmea teriam como prémio uma rápida mas importante cópula nocturna.
Porém, Dalí naquela noite quis ir mais longe.
O amor dos dois havia sido posto em causa várias vezes nos últimos tempos. Aquele era por isso, para Dalí, um jogo decisivo. Tratava-se de correr um risco a sério, como um pirilampo macho que tivesse tanto desejo de acasalar que, mesmo pressentindo a presença de animais com vontade de fazer de si um banquete, mesmo assim então emitiria luz forte e repetidas vozes para conseguir seduzir a sua fêmea.
O que fez então Dalí? Não ligou a lanterna e mantendo-se na mesma posição, deitado de cabeça para cima e com os braços cruzados num gesto religioso, abriu muito os olhos, abriu imenso os olhos pois estava certo de que o branco do seu globo ocular emitiria, através da noite, uma luz tal que Gala, de imediato, o localizaria.
Não havia então, no campo nocturno, mais nenhuma fonte de luz que não as luzes intermitentes dos pirilampos e a luz, acreditava Dalí, que a parte branca dos seus olhos emitia.
Duas, três, quatro, dez balas no total, foram disparadas por Gala naquela noite. Os pirilampos por certo nada percebiam daquele jogo perigoso que se desenrolava entre um macho e uma fêmea humanos, no entanto as balas eram eficazes e os pirilampos machos deixavam de emitir luz, afastando-se ou calando-se (por assim dizer).
Dalí por seu turno, embora com os seus longos bigodes erguidos na ponta que, naquela posição, lhe provocavam uma leve comichão na face, mantinha concentração absoluta – como se estivesse morto, mas respirasse ainda.
Mantinha-se em silêncio, com os olhos muito abertos à espera que a sua fêmea o localizasse pela luz constante que produzia.
O grande perigo era se um pirilampo tivesse a má ideia de emitir luz perto do sítio onde ele estava. Se tal acontecesse, Gala poderia disparar nessa direcção.
Mas Dalí confiava no amor entre os dois. E estava certo de que uma fêmea, mesmo com aquelas más condições de visibilidade, não dispararia sobre o seu macho.
Dalí diga-se, não acreditava apenas que o amor entre os dois tinha bases bem visíveis – como a luz que o branco dos seus olhos emitia na noite -, acreditava estar ainda ligado a Gala através dos elementos psíquicos, bem mais misteriosos. Dalí estava certo de que, devido á ligação psíquica entre as duas cabeças do casal, Gala o encontraria em qualquer ponto do mundo, sem qualquer indicação racional ou ajuda científica: - Gala nunca poderá fugir de Dalí – dizia ele, por vezes, arredondando cada palavra. – E Dalí nunca poderá fugir de Gala.
E nessas alturas repetia, alto, com grandiloquência, utilizando estranhas associações de palavras:
- Pela cabeça psíquica de Dalí, gala será localizada em qualquer parte do mundo. Pela cabeça psíquica de Gala, Dalí será também encontrado em qualquer parte do mundo.
Acreditava pois na ligação indestrutível das suas cabeças Psíquicas e, por isso, naquela noite, deitado num enorme campo às escuras, nesse largo Campo dos Pirilampos, Dalí sabia que, se Gala disparasse na sua direcção, o faria de forma intencional – e isso sim, provaria que o amor de Gala por ele havia terminado. Se Gala me matar… - pensava Dalí, repetindo, como tanto gostava, o óbvio e ao repeti-lo fazendo do óbvio uma declaração extraordinária -… Se Gala me matar é porque já não me ama.
E Dalí, naquele preciso instante, deitado e totalmente imóvel, sentindo já a humidade das ervas passar para a roupa e para todo seu corpo, pensava, como que rezando:
- Dalí sabe sempre onde está Gala. Gala sabe sempre onde está Dalí.
Mas, de facto, se há poucas horas fora Dalí a perguntar – Onde está Gala? -, Agora, em plena noite, no Campo dos Pirilampos, campo deserto e afastado de todo o vestígio de civilização, é Gala que, segurando uma arma e disparando para eliminar os outros machos, pergunta: Onde está Dalí?
E, por uns segundos, naquela noite, tanto Dalí como Gala duvidam do seu amor. Dalí, sempre imóvel, em silêncio, deitado sobre a erva, pensa: se nem a minha cabeça psíquica nem a cor branca dos meus olhos é suficiente para Gala me localizar, então algo entre nós os dois está desfeito. E Gala, por seu turno, continuando a avançar pelo campo com a sua espingarda, pensa: se não localizo a luz de Dalí no Campo dos Pirilampos, então é a altura de partir.
Mas, subitamente, uma nova luz se acende em pleno campo. Gala vê essa luz perfeitamente, embora ela surja a mais de cem metros do sítio onde está. Olha para o chão e nada consegue distinguir. Por instantes Gala prepara a espingarda para disparar, mas de imediato a baixa.
- É Dalí! -,Gala tem certeza.
Ela não viu uma única parte do corpo do seu amado, mas naquela luz que acendia e apagava Gala percebeu um ritmo, um padrão que revelava Dalí.
É o ritmo da luz de Dalí, murmurou Gala.
E eis então chegados ao momento decisivo. Gala aproxima-se daquela fonte de luz. A noite de uma escuridão absoluta nada deixa ver e por isso só a poucos metros Gala vê o que antes pressentia: Dalí deitado, sobre as ervas, com a cabeça virada para cima, os braços cruzados sobre o tronco e uma das mãos a segurar numa lanterna desligada.
Gala baixou a arma. Eliminara todos os machos, restava o seu – pronto para o prémio prometido.
Dalí não se mexeu, baixou e levantou as pálpebras mais duas vezes. Fora dessa forma que ele há pouco produzira a luz intermitente decisiva: abrindo e fechando os olhos.
Quando Gala se aproximou, Dalí disse, maravilhado consigo mesmo:
- Que luz, que luz fantástica provoca o branco dos meus olhos!
- Sim, que luz perfeita, querido Dalí – murmurou ainda Gala, antes de deixar o seu corpo pousar sobre o mais estranho macho que já conhecera no Campo dos Pirilampos.

Fonte: Revista Visão
Texto/Autor: Gonçalo M. Tavares
Foto: Yevegenia Nayberg /re-searcher.com
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