quinta-feira, 13 de julho de 2017

Sua Magestade, a Mulher


Decididamente, Eva, orgulhosa e triunfante, cortou o cabelo, deu largas ás suas aspirações e desistiu de ser apenas um triste animal de ideias curtas e cabelos compridos – frases feita, repetida, a propósito e a despropósito, pelo seu fiel inimigo: o homem.
Agora, cheia de uma coragem nova – que faz decerto inveja às suas avós, que bordavam a escama de corvina e espreitavam pela cortina levemente erguida, quem passava na rua, porque era feio «ver» - tornou-se a companheira do homem, a sua corrente aos lugares públicos, a sua rival nas profissões liberais e deixou de ser – em boa hora o diga – o passatempo galante, mais ou menos matrimonial, espécie de jardim colorido por onde o rei da criação recreava os olhos e o espírito cançado de enfrentar a aridez da vida.
Libertou-se Eva rebelde do velho jugo e ei-la, agora, cabelos ao vento, pasta debaixo do braço, olhar brilhante de fé e de entusiasmo, passo firme e sereno de quem sabe para onde vai e o que quere, a caminho da Universidade.
E é ver as raparigas aos bandos, correndo ao sol, à chuva, matizando a cidade com a graça da sua juventude! Contentes, lá vão em demanda do bem mais precioso que é a independência, porque precisam de sentir-se aptas a encarar confiadamente o futuro.
Engenheiras, medicas, advogadas, contabilistas, as raparigas preparam-se para a luta, soldados conscientes da grande batalha da vida, unem fileiras e preparam-se para a vitória.
É agradável, é sadio e, sobretudo, é honesto – no ar a palavra honesto tem, realmente de sério – ver a mulher libertar-se da sua misera condição de animal doméstico, a quem é preciso manter e que, depois de usado, quando desagrada, a lei do divórcio misericordiosamente estabelece que o possuidor do objecto seja obrigado a dar-lhe o necessário para não morrer de fome.
- Pois de fraqueza não faz mal
-, Visto que o seu bilhete de identidade reza como profissão apenas esta: doméstica.
É tempo da mulher ir para o casamento obedecendo apenas ao coração, é tempo de Sua majestade a mulher, ser, finalmente, dona e senhora de si própria…
Aqui tem, D. Carolina, o meu sincero parecer sobre aquilo a que a minha amiga, com a sua habitual complacência e pouco hábito de pensar, chama modernismo.
É evidente que a minha amiga não atira êste modernismo por ironia, à guisa de pedrada nos hábitos da geração de hoje -,não, longe disso! – mas porque, com justo orgulho, quis ter a bondade de me apresentar os seus filhos, gente moderna como disse, embora criada por uma mulher antiga. Acredite, D. Carolina, que gostei de ver a Milocas e o Jaime, sádios, belos, agradou-me a ouvir a Milocas, cheia de ideias de independência, confessando, com certa vaidade, as cargas de água que apanha, a pé firme, para provar que será um dos homens de àmanhã. E essa encantadora Milocas, com voz doce, atreveu-se a elucidar que fazia estes prodígios enquanto o Jaime – sem desprimor para a medida de profilaxia que representa um chapéu de chuva – não se abalança até ao campo de Santana, de onde sairá um dia doutor, sem o precioso objecto e um par de galochas, prenda muito útil de sua mãe.
- Molhar os pés faz muito mal ao cérebro – apressou-se a minha amiga a esclarecer, receando, justamente que eu imaginasse que seu filho podia ter dores de cabeça como qualquer de nós…
Pois gostei da Milocas, D. carolina, deixe-me repetir-lho, já que exigiu que eu declarasse o que me parecia o triunfo feminino da nossa época. A sua filha deve ser inteligente – estou já a vêla defender com eloquência um réu confiado, que entregou em róseas mãos o seu destino, e creio bem que saberá fazê-lo com brilho e conseguir uma absolvição.
É muito gentil no seu «doutor» como lhe chama, com uma pontinha de natural vaidade. Mas aqui para nós, devo confessar que não gostei de a ver mandar a criada coser as meias que ia calçar e que detestei o alfinete com que, num gesto íntimo, pregou a sai, onde se notava lamentavelmente falta de colchetes. A D. Carolina reparou, igualmente nêsse pequeno senão, que tentou justificar, risonhamente: Estas intelectuais são assim!...
Êsse é que é o seu engano minha bondosa amiga e, pelo que vejo, é também o engano da sua galante menina. Médica, advogada, escritora, engenheira, jornalista, a mulher para não se tornar num ridículo arremedo do homem, carece de conservar, intactas, as suas qualidades naturais. E olhe que isto de coser meias, se não veio do tempo da mãe Eva, é porque, ela andava descalça.
A sua filha quere ser advogada e faz muito bem porque a advocacia é um modo de vida como qualquer outro. E a D. Carolina já lhe agrada ouvi-la falar nos camaradas, nos códigos, nos artigos de lei, enfim emtudo que faz dela o seu rapaz, mas, pela sua rica e preciosa saúde, D. carolina, diga à pequena que ela não é menos bela, nem menos inteligente se falar também em lar. Os seus afusados dedos não perdem se esboçarem gestos femininos. Deus criou as mãos da mulher para embalarem os filhos do seu amor.
E a profissão?...
Mas não detrupe a verdade dos factos, minha amiga! A profissão é útil para ajudar o lar e nunca para o destruir. Dentro de casa, a doutora, sem quebra da sua inteligência, cede o lugar á mulher. E não esqueça, minha amiga, que a sua filha será a esposa, a mãe de àmanhã. Se isto não for assim, a educação que lhe deu não a preparou para a vida, inutilizou-a. Pode tê-la tonado apta a ganhar dinheiro, o que é muito mas não é tudo. Precisa também, ensina-la a ganhar felicidade.
Diga isto à Milocas, faça-a compreender a única verdade de que me parece andar um pouco arredia. Porque não a manda apanhar flôres, pôr a mesa para o chá, preparar um doce, ocupar-se com o lar que hoje também é o seu? E – se não é indiscrição a Milocas sabe fazer bifes de cebolada, Não! Mas porque espera? Salve o coração de sua filha, fazendo com que ela atenda, carinhosamente, ao estômago é o órgão mais sensível do homem…
Com o seu Jaime dá-se exactamente o inverso. A minha boa D. carolina não se lembra de que êle cresceu, que tem já vinte e cinco anos e que lhe simplifica exageradamente a vida. O seu Jaime tem sempre mais dinheiro do que precisa, num triste mundo em que acontece o contrário quási a tôda a gente; vai para as aulas de táxi porque se levantou tarde, num apalavra, faz ricamente o seu curso.
«Trabalha muito», diz a minha amiga. Mas como, se o leva quási ao colo às fontes onde êle é forçado a água pura da sabedoria! E isto porque não pode servir-lhe em casa! O seu Jaime tem tudo menos energia e coragem para a vida. Será doutor – teimando, são todos… - e depois, é destas coisas… - êle só perdeu ainda três anos…
Mas o que êle nunca será, se a minha amiga continua a educa-lo assim, é um homem, o seu Jaime, com o rico corpo que o Senhor lhe deu e que êle utiliza dançando, em todos os antros nocturnos, salvou-se da vida militar graças a uma poderosa série de cartas de empenho que lhe asseguraram uma apendicite e uma lesão cardíaca, de que, possivelmente, nunca virá a sofre, para seu sossego. Mas esse menino amimado, que acalenta no seu regaço, é bem diferente cá fora e eu gostava que o ouvisse no café, na Faculdade:
- «Somos um país de guerreiros!»… «Expulsámos os espanhóis!»… «Corremos os franceses!»… »Nós vamos defender as colónias!»…
Nós… nós… nós… Ora, nós no calão do seu Jaiminho, são os outros, os que não têm cartas de empenho, os que não marcham ao abrigo de chapéus de chuva, nem vão de táxi apresentar-se na hora em que as suas vidas são precisas.
Quere ter um filho homem D. Carolina? Um filho varão e não apenas o doutor Jaiminho?
Quere um verdadeiro rapaz?
Atire o Jaiminho para a vida, chame-lhe Jaime, sem inho, diga-lhe que é um homem, deixe-o ser soldado como os que não usam as cartas mágicas, deixe-o gozar e sofre a vida sem sentir por baixo a sua mão protectora e creia que, depois de ter sabido o que são deveres, o Jaime fica apto a gozar os verdadeiros direitos do homem.
O mundo não se contorce nesta tremenda convulsão para preparar uma cama ainda mais fofa para o Jaiminho, desta vez e sempre, à custa de uma boa cunha

Fonte: Revista Ver e Crer n.º 3 (Julho de 1945)
Texto/Autor: Alice Ogando
Foto de net
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