Decididamente, Eva, orgulhosa e triunfante,
cortou o cabelo, deu largas ás suas aspirações e desistiu de ser apenas um
triste animal de ideias curtas e cabelos compridos – frases feita, repetida, a
propósito e a despropósito, pelo seu fiel inimigo: o homem.
Agora, cheia de uma coragem nova – que faz
decerto inveja às suas avós, que bordavam a escama de corvina e espreitavam
pela cortina levemente erguida, quem passava na rua, porque era feio «ver» -
tornou-se a companheira do homem, a sua corrente aos lugares públicos, a sua
rival nas profissões liberais e deixou de ser – em boa hora o diga – o
passatempo galante, mais ou menos matrimonial, espécie de jardim colorido por
onde o rei da criação recreava os olhos e o espírito cançado de enfrentar a
aridez da vida.
Libertou-se Eva rebelde do velho jugo e ei-la,
agora, cabelos ao vento, pasta debaixo do braço, olhar brilhante de fé e de
entusiasmo, passo firme e sereno de quem sabe para onde vai e o que quere, a
caminho da Universidade.
E é ver as raparigas aos bandos, correndo ao
sol, à chuva, matizando a cidade com a graça da sua juventude! Contentes, lá
vão em demanda do bem mais precioso que é a independência, porque precisam de
sentir-se aptas a encarar confiadamente o futuro.
Engenheiras, medicas, advogadas, contabilistas,
as raparigas preparam-se para a luta, soldados conscientes da grande batalha da
vida, unem fileiras e preparam-se para a vitória.
É agradável, é sadio e, sobretudo, é honesto –
no ar a palavra honesto tem, realmente de sério – ver a mulher libertar-se da
sua misera condição de animal doméstico, a quem é preciso manter e que, depois
de usado, quando desagrada, a lei do divórcio misericordiosamente estabelece
que o possuidor do objecto seja obrigado a dar-lhe o necessário para não morrer
de fome.
- Pois de fraqueza não faz mal
-, Visto que o seu bilhete de identidade reza
como profissão apenas esta: doméstica.
É tempo da mulher ir para o casamento obedecendo
apenas ao coração, é tempo de Sua majestade a mulher, ser, finalmente, dona e
senhora de si própria…
Aqui tem, D. Carolina, o meu sincero parecer
sobre aquilo a que a minha amiga, com a sua habitual complacência e pouco
hábito de pensar, chama modernismo.
É evidente que a minha amiga não atira êste
modernismo por ironia, à guisa de pedrada nos hábitos da geração de hoje -,não,
longe disso! – mas porque, com justo orgulho, quis ter a bondade de me
apresentar os seus filhos, gente moderna como disse, embora criada por uma
mulher antiga. Acredite, D. Carolina, que gostei de ver a Milocas e o Jaime,
sádios, belos, agradou-me a ouvir a Milocas, cheia de ideias de independência,
confessando, com certa vaidade, as cargas de água que apanha, a pé firme, para
provar que será um dos homens de àmanhã. E essa encantadora Milocas, com voz
doce, atreveu-se a elucidar que fazia estes prodígios enquanto o Jaime – sem
desprimor para a medida de profilaxia que representa um chapéu de chuva – não
se abalança até ao campo de Santana, de onde sairá um dia doutor, sem o
precioso objecto e um par de galochas, prenda muito útil de sua mãe.
- Molhar os pés faz muito mal ao cérebro –
apressou-se a minha amiga a esclarecer, receando, justamente que eu imaginasse
que seu filho podia ter dores de cabeça como qualquer de nós…
Pois gostei da Milocas, D. carolina, deixe-me
repetir-lho, já que exigiu que eu declarasse o que me parecia o triunfo feminino
da nossa época. A sua filha deve ser inteligente – estou já a vêla defender com
eloquência um réu confiado, que entregou em róseas mãos o seu destino, e creio
bem que saberá fazê-lo com brilho e conseguir uma absolvição.
É muito gentil no seu «doutor» como lhe chama,
com uma pontinha de natural vaidade. Mas aqui para nós, devo confessar que não
gostei de a ver mandar a criada coser as meias que ia calçar e que detestei o
alfinete com que, num gesto íntimo, pregou a sai, onde se notava
lamentavelmente falta de colchetes. A D. Carolina reparou, igualmente nêsse
pequeno senão, que tentou justificar, risonhamente: Estas intelectuais são
assim!...
Êsse é que é o seu engano minha bondosa amiga e,
pelo que vejo, é também o engano da sua galante menina. Médica, advogada,
escritora, engenheira, jornalista, a mulher para não se tornar num ridículo
arremedo do homem, carece de conservar, intactas, as suas qualidades naturais.
E olhe que isto de coser meias, se não veio do tempo da mãe Eva, é porque, ela
andava descalça.
A sua filha quere ser advogada e faz muito bem
porque a advocacia é um modo de vida como qualquer outro. E a D. Carolina já
lhe agrada ouvi-la falar nos camaradas, nos códigos, nos artigos de lei, enfim
emtudo que faz dela o seu rapaz, mas, pela sua rica e preciosa saúde, D.
carolina, diga à pequena que ela não é menos bela, nem menos inteligente se
falar também em lar. Os seus afusados dedos não perdem se esboçarem gestos
femininos. Deus criou as mãos da mulher para embalarem os filhos do seu amor.
E a profissão?...
Mas não detrupe a verdade dos factos, minha
amiga! A profissão é útil para ajudar o lar e nunca para o destruir. Dentro de
casa, a doutora, sem quebra da sua inteligência, cede o lugar á mulher. E não
esqueça, minha amiga, que a sua filha será a esposa, a mãe de àmanhã. Se isto
não for assim, a educação que lhe deu não a preparou para a vida, inutilizou-a.
Pode tê-la tonado apta a ganhar dinheiro, o que é muito mas não é tudo. Precisa
também, ensina-la a ganhar felicidade.
Diga isto à Milocas, faça-a compreender a única
verdade de que me parece andar um pouco arredia. Porque não a manda apanhar
flôres, pôr a mesa para o chá, preparar um doce, ocupar-se com o lar que hoje
também é o seu? E – se não é indiscrição a Milocas sabe fazer bifes de cebolada,
Não! Mas porque espera? Salve o coração de sua filha, fazendo com que ela
atenda, carinhosamente, ao estômago é o órgão mais sensível do homem…
Com o seu Jaime dá-se exactamente o inverso. A
minha boa D. carolina não se lembra de que êle cresceu, que tem já vinte e
cinco anos e que lhe simplifica exageradamente a vida. O seu Jaime tem sempre
mais dinheiro do que precisa, num triste mundo em que acontece o contrário
quási a tôda a gente; vai para as aulas de táxi porque se levantou tarde, num
apalavra, faz ricamente o seu curso.
«Trabalha muito», diz a minha amiga. Mas como,
se o leva quási ao colo às fontes onde êle é forçado a água pura da sabedoria!
E isto porque não pode servir-lhe em casa! O seu Jaime tem tudo menos energia e
coragem para a vida. Será doutor – teimando, são todos… - e depois, é destas
coisas… - êle só perdeu ainda três anos…
Mas o que êle nunca será, se a minha amiga
continua a educa-lo assim, é um homem, o seu Jaime, com o rico corpo que o
Senhor lhe deu e que êle utiliza dançando, em todos os antros nocturnos,
salvou-se da vida militar graças a uma poderosa série de cartas de empenho que
lhe asseguraram uma apendicite e uma lesão cardíaca, de que, possivelmente,
nunca virá a sofre, para seu sossego. Mas esse menino amimado, que acalenta no
seu regaço, é bem diferente cá fora e eu gostava que o ouvisse no café, na
Faculdade:
- «Somos um país de guerreiros!»… «Expulsámos os
espanhóis!»… «Corremos os franceses!»… »Nós vamos defender as colónias!»…
Nós… nós… nós… Ora, nós no calão do seu
Jaiminho, são os outros, os que não têm cartas de empenho, os que não marcham
ao abrigo de chapéus de chuva, nem vão de táxi apresentar-se na hora em que as
suas vidas são precisas.
Quere ter um filho homem D. Carolina? Um filho
varão e não apenas o doutor Jaiminho?
Quere um verdadeiro rapaz?
Atire o Jaiminho para a vida, chame-lhe Jaime,
sem inho, diga-lhe que é um homem,
deixe-o ser soldado como os que não usam as cartas mágicas, deixe-o gozar e
sofre a vida sem sentir por baixo a sua mão protectora e creia que, depois de
ter sabido o que são deveres, o Jaime fica apto a gozar os verdadeiros direitos
do homem.
O mundo não se contorce nesta tremenda convulsão
para preparar uma cama ainda mais fofa para o Jaiminho, desta vez e sempre, à
custa de uma boa cunha…
Fonte: Revista Ver e Crer n.º 3 (Julho de 1945)
Texto/Autor: Alice Ogando
Foto de net
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