sábado, 18 de novembro de 2017

Uma manada de elefantes



Fui até final da minha tarefa acompanhado sempre pelo meu amigo T.C.
E à sua amável e preciosa companhia, devo – o tornar-se o serviço de que eu ia incumbido – no melhor, mais grato e inesquecível momento de toda a minha vida.
Trinta dias levou o recenseamento da população indígena da área do meu posto. Trinta dias, pois meu espirito viveu as maiores emoções e, meus olhos viram, as mais curiosas e estupendas manifestações da Natureza.
Estes trinta dias, porem, são hoje para mim, trinta fantasmas de saudade!...
Pois, só quem viveu em África; só quem – como eu – parou no coração da selva; em contacto directo com o perigo; nas solidões imensas da floresta; nas profundas e misteriosas noites do sertão; pode dizer, sentir, viver, compreender o encanto e a saudade que nos fica – para o resto da vida – ao acharmo-nos longe, dessas terras, vivendo delas só pelo coração, e, pelo que a retina. Maravilhada, fixou.
*
*   *
Iniciámos a nossa retirada logo após a conclusão dos meus trabalhos.
T.C., aproveitando sempre a belesa das manhãs, convidava-me a marcharmos afastados da caravana.
Procurava, assim, o encontro furtuito com a caça, dando-me ao mesmo tempo o prazer de observar! Observar sempre!
Pois, o meu amigo, bem conhecia a minha satisfação em cada costume novo observados nos animais isso para mim – e ele bem o sabia também – valia mais que matar!
Eram passados vinte e oito dias desde a nossa partida para o mato.
Agora regressávamos.
E, a dois dias da chegada ao M… já quasi havia arrefecido em mim aquela cegueira de estar sempre á espera de encontrar féras. Mas, o acaso ou destino, marcado havia já que um novo espectáculo se oferecia antes da chegada.
E, desse modo, na ante-véspera, já pela noite alta aí por volta das três da manhã fomos acordados ao
- Siô o po n jánba! (1)
Levantámo-nos de chofre.
Saltámos fora do carro e, de espingardas aperradas, dispusemo-nos a vender cara a vida…
Bem problemático seria, no entanto, o resultado da nossa defesa. Mas o instinto da conservação imperava.
Lado a lado, com as espingardas fortemente seguras, lançamo-nos para a frente.
Circundámos o acampamento e… parámos; aguardando, de olhos fitos no mato, o aparecimento dos elefantes!
A noite mantinha-se silenciosa e escura.
A lua há muito declinára. E, o sol, tarde viria iluminar as trevas que nos envolviam.
Somente, lá no alto, as estrelas – olhos brilhantes da Providência – testemunhavam o nosso sobressalto.
Passaram-se dois minutos de angustiosa espectativa.
Súbito, o chão tremeu.
Ouviu-se um rápido e violento estalar de árvores e de ramos. Uma rajada imensa passou por nós, como um furacão. E a terra , pareceu convulsionar-se em terrível tremor subterrâneo.
Passou-me um calafrio pela espinha.
Tive a impressão que ia ser enlaçado pela tromba dum elefante e lançado pelo espaço fóra.
Nervosamente, procurei o olhar do meu amigo. Quis lêr na sua fisionomia a grandesa do perigo. Mas enganei-me! O seu rosto – salvo a expressão fixa da atenção – estava duma calma absoluta! Parecia desafiar aquilo que eu temia – o ataque dos elefantes!
Todavia, o caso não era – e pelo menos ele assim mo disse depois – senão para sustos.
Mas, esse companheiro preciosíssimo dava-me uma confiança absoluta. E’ que, seu caracter, seu tipo, seu temperamento, eram perfeitamente harmónicos com as qualidades conferidas aos heróis lendários.
Bastava vê-lo, num momento como este, para adquirir-mos a certesa de se estar vendo um herói, um dominador, um forte, um homem nascido no perigo e para o perigo.
No entanto o meu receio subsistia.
Aquele infernal parecia cada vez mais próximo de nós.
Felizmente que T.C. calculando o meu susto na razão directa dos meus conhecimentos de caça ás feras, deu-se pressa em tranquilisar-me.
Assim, dando provas dumas grandes faculdades perceptivas, diz-me , no meio daquele cáos de ruidos – numa calma de espírito espantosa – e debaixo daquele escuro ambiente de pavor:
- Afastam-se!...
Olhei-o admirado e confuso…
E , mentalmente, perguntei como pudera ele, tão rapidamente e no meio de semelhante confusão de ruidos, distinguir que os elefantes se afastavam?
- Não viriam, antes, sobre nós?
Mas, essa afirmação era o seu segredo profissional; era o seu forte.
Pois, de facto, parecia que fora ele quem ordenara o afastamento dos elefantes: a retirada da «Bêsta do Apocalipse», que ainda há bem pouco, quasi presentira a devorar-me…


Passada a primeira impressão, quando o ruido da manáda já se extinguia ao longe, voltámos para o carro.
Só, então, o meu amigo se abriu e, pausadamente, como se dissesse a coisa mais natural dêste mundo, ao mesmo tempo que se estendia sobre a cama, exclamou:
- Sabe, meu amigo, desta vez “tive mêdo”!
-Mêdo?
E já titubeando, cheio de sono:
- Sim. E vou explicar-lhe porquê: - Não é fácil assistir-se ás corridas destes animais e ficarmos com o arranjinho e a coragem tal e qual a tínhamos no principio. O elefante, em plena selva, destrói – na maioria dos casos – tudo quanto se opôe à sua passagem.
Depois, consultando o seu pequenino relógio de pulso acrescentou: - E’ tarde, amigo, vamos dormir.
- Mas é que.
- Sim! Pois não quere, logo que amanheça, perseguir a manáda?
- E’ verdade – concordei.
Adormecemos.
Quatro horas depois estávamos a pé e, em breve, equipados para a perseguição.
Montámos nos nossos cavalos e acompanhados por três negros entrámos no rasto dos elefantes.
Era uma manáda colossal!
As pégadas crusavam-se e sobrepunham-se não nos deixando compreender o numero de animais de que a manáda se compunha. Andámos quasi meio dia.
O desânimo começava a apoderar-se de mim, pois receava voltar para traz sem ter conseguido ver, novamente, os elefantes em plena selva.
O receio de me afastar muito das proximidades do posto, - onde já estava – a força escaldante do sol e o calôr exalado da terra, quebravam-me a energia, fazendo-me pensar em desistir.
Cheguei mesmo a esboçar ao meu amigo essa resolução. Mas, ele, dissuadiu-me de tal, garantindo-me que em menos de um quarto de hora voltaríamos a ver os elefantes. De facto assim aconteceu.
Novamente, meus olhos, sempre sequiosos de ver bebiam, ávidamente, os contornos do quadro que se me deparava.
E, por indicação de T.C. – que há muito procurava qualquer coisa, que eu só mais tarde percebi o que era – subimos a uma árvore e dela atentámos nos elefantes.
Então, a minha natureza, sempre disposta a exclamações, em breve caía na interrogação:
- Porque é que os elefantes, volta e meia, rojam a tromba pelo chão, apreendem a terra, atirando-a depois ao ar?
Novo sorriso, enigma, do meu amigo e sua explicação:
- Estão vendo se na sua frente está algum inimigo!... não viu há pouco, antes de subirmos a esta árvore, os cuidados que tive em procurar o ponto donde o vento soprava?
- vi de facto, mas não percebi nessa altura que o meu amigo procurava a direcção do vento, nem consigo perceber agora que relação pode existir entre essa preocupação e o capricho daqueles animais.
- Capricho?! – Diga antes: inteligência! – Pois, saiba amigo., que não é possível a ninguém aproximar-se do elefante ou de qualquer outro animal – da chamada caça grossa – sem antecipadamente conhecer a direcção do vento. E, se até hoje temos conseguido chegar – como agora – até à vista destes animais, sem eles o pressentirem, devemo-lo a esse cuidado, que eu tenho mantido, sem nunca lho dizer, a fim de lhe proporcionar mais esta curiosa observação.
- Quere, então, o meu amigo dizer, que eles atiram a terra ao ar para consoante a direcção que o pó leva se virarem contra o vento e beberem os odôres que os ares trazem, conhecendo dêsse modo a aproximação do inimigo?
- Assim é, meu amigo.
-!...
Voltámos para trás. E no dia seguinte à noite, entravamos no meu «posto».
Assim terminou o meu serviço e a amável companhia do meu amigo, que voltou para o mato…

(1)             Os elefantes

Fonte: Jornal Infantil Tic-Tac n.º 2 (1932)
Texto/ Autor: Fidalgo dos Santos
Foto da Revista
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