sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Sem tréguas à vista


O senhor Ribeiro tinha razão: o sobrinho era mesmo trabalhador. Chegava de madrugada e saía antes das sete da manhã. Era preciso ser mesmo empenhado no que fazia… A cozinha estava deserta quando desci. Preparei um café e uma torrada. Enquanto comia, comecei a ficar irritada com a cena anterior. O Rafael podia ter-se apresentado ou dito bom dia! Até o cão tinha sido mais afável do que o dono! Ao menos, não ia ter de conviver muito com ele! Melhor assim, estava farta de ter de manter a máscara de simpatia.
Depois de comer, tentei ligar para a Beta. Telemóvel desligado, como seria de esperar àquelas horas da manhã. Voltei ao quarto, arrumei a cama e fiquei sem nada para fazer. A casa escura, de janelas fechadas, não era acolhedora. O sol brilhava lá fora, a convidar-me para uma caminhada.
A fazenda ainda tinha uma boa dimensão; nas traseiras da casa, estendia-se uma plantação de videiras até onde a vista alcançava, e elas estavam bem cuidadas, ao contrário do jardim. Caminhei ao longo do carreiro, imersa em pensamentos. A tensão matinal desapareceu com a vista maravilhosa para a serra… Quando dei por mim, estava frente a um córrego de água límpida. Sentei-me com os pés dentro de água e, pela primeira vez desde que cheguei ao Norte, senti-me contente. Deixei-me ficar por ali, embalada pelo som constante da água, enquanto decidia o que ia fazer a seguir. Podia regressar à casa de Rafael e esperar por notícias da Beta. Não estava com grande vontade de ficar parada a olhar para as paredes até que ela se lembrasse de mim. Mais valia ter ficado na cama. O primo do André fugiu a sete pés e só o Tyson tinha sentido um genuíno interesse em mim.
A casa da dona Júlia não devia ficar distante dali. Se ao menos tivesse fixado o caminho, podia ir andando até lá. Assim não ficava parada à espera. Detesto esperar! Pareceu-me ser uma boa solução. O pior que podia acontecer era perder-me e ter de andar para trás. Não tinha nada a recear, trazia a mochila, o telemóvel e uma garrafa com água.
Convencida de que era a melhor coisa a fazer, tirei os pés de molho e calcei os ténis. As calças azuis ficaram sujas de terra, mas não ia importar-me com um pormenor desses. Quando cheguei ao meio da vinha, deparei-me com um empregado do Rafael, que indicou-me um atalho para a casa dos pais do André. Garantiu-me que, em 15 minutos, estaria lá.
Meia hora depois, dei por mim no meio de um pinhal. A vinha ficava a uns 20 minutos e o meu destino não parecia ser mais perto. Aquele caminho não deveria ter muito uso. A vegetação cobria o chão. Flores silvestres cresciam ao lado de árvores de vários tipos e tamanhos. Se não estivesse irritada por não saber onde estava, nem que direcção devia seguir, podia ter-me sentido tentada a explorar as redondezas.
Encontrei o riacho que o empregado me tinha dado como ponto de referência. Segundo ele, era só segui-lo e ia dar logo com a propriedade da família Ribeiro. Talvez tenha sido a falta de atenção ou apenas um golpe de azar: tropecei na raiz de uma árvore e rebolei por um declive. Fora o susto, continuava inteira. O orgulho ferido e o tecido da túnica rasgado contribuíram para aumentar a minha irritação.
Fiquei sentada no chão durante uns minutos. Controlei uma súbita vontade de chorar. Aquela visita ao Norte não estava a ser nada como tinha imaginado. Nem era o contratempo de ficar na casa de um desconhecido nem tão-pouco o facto de ele ser arrogante e mal-educado. O meu desalento podia não ter explicação, mas também não era nada oportuno. Ao relembrar a minha queda deselegante, o meu sentido de humor venceu a batalha. Desatei a rir, ali sozinha, no meio do pinhal. Meti-me a caminho, desta vez com mais atenção aos obstáculos. Mais dez minutos e estava no pátio da casa Ribeiro. Reparei que estava um carro estacionado ao lado do meu. O pai de André devia estar em casa. Ainda bem, assim não tinha de aturar a tagarelice da dona Júlia.
A porta estava aberta e eu podia ouvir vozes na cozinha. Hesitei antes de entrar. Se calhar devia chamar primeiro, antes de invadir a casa. Provavelmente, a não ser que desse uns bons berros, eles não me ouviriam. Acabei por entrar, com cuidado para não fazer barulho. A minha intensão era chegar perto das escadas, que ficavam próximas da entrada para a cozinha, e chamar pela dona Júlia. Como de costume os meus planos deram para o torto. Com uma rapidez inexplicável, aconteceram três coisas que me colocaram numa posição embaraçante: ouvi uma voz facilmente identificável comentar: “Não tenho nada contra a amiga do André, mas para mim, todas as mulheres são um problema. Quanto mais depressa ela sair da minha casa melhor!”
Tyson surge do corredor e pula para cima de mim; não aguentei o peso e caí desamparada em cima de um degrau.
A barulheira  chamou a atenção da dona Júlia e de Rafael, que apareceram á porta da cozinha, com um ar alarmado. Tyson continuou em cima de mim, presenteando-me com lambidelas molhadas de alegria canina. Obedecendo à voz de comando do dono Tyson libertou-me do seu peso.
- Grande susto que me pregou! Como é que veio cá parar?
A dona Júlia tinha todo o direito de saber porque é que lhe tinha invadido a casa. Mais uma vez, antes que conseguisse responder, ela atalhou:
- O que é que lhe aconteceu? Tem a roupa suja e rasgada! -  só a intervenção de Rafael permitiu que eu me explicasse.
- Tia, deixe a rapariga falar!
- Peço desculpa. Levantei-me cedo e, como a Beta não atendia o telemóvel, caminhei até aqui.
- Oh, Rafael, então não podias ter trazido a Adriana? – Era uma pergunta pertinente. Ele ficou com o mesmo ar severo e respondeu:
- podia, se soubesse que ela queria boleia…
Aquela resposta foi a gota de água! Então, ele tinha-me virado as costas, sem sequer me dar os bons-dias, e agora a culpa era minha!
- Se o senhor não tivesse saído tão rapidamente, eu talvez tivesse tido oportunidade para pedir-lhe boleia!
A conversa tinha todos os ingredientes para azedar. A dona Júlia percebeu que havia algo estranho e interveio.
- Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. A Adriana tem de desculpar o meu sobrinho, ele não fez por mal. Venha comer que, de estômago cheio, vai ver que fica logo mais bem-disposta.
- Obrigada, mas não tenho fome. Queria ver a Beta.
- Ah, mas ela ainda está a dormir. É cedo para acordá-la.
Mais uma vez senti-me a estorvar os planos daquela família. E a Beta nem sequer se lembrava que eu tinha vindo com ela; continuava a dormir profundamente. Deu-me uma enorme vontade de subir as escadas e ir acordá-la à bofetada. Sim senhora, implora-me para vir com ela e choraminga com medo da sogra. Uma vez chegadas a Chaves, age como se fosse normal impingir-me a casa de um desconhecido. Ainda por cima, um desconhecido que demonstrava claramente não me querer acolher…
A minha revolta transparecia no olhar. Rafael deve ter percebido, pois sugeriu:
- O melhor é ir mudar de roupa. Aproveito e vou a casa buscar uns documentos que me esqueci. Pode vir comigo, que depois deixo-a aqui.
- Boa ideia! – Dona Júlia concordou prontamente. – Assim dá tempo para a Beta acordar. E a Adriana não pode ir assim, nesse estado, para a cidade.
Mais uma vez decidiram o que eu devia fazer. Apeteceu-me fazer uma birra, como uma criança pequena. O meu carro estava mesmo ali à porta. Era só ir buscar a chave ao quarto da Beta e escapulir-me para Lisboa. O problema é que já não tenho idade para fazer birras. Sem outra alternativa, acedo e segui Rafael até ao jipe.
Ele não tornou a falar e eu também não meti conversa. Limitei-me a fazer o caminho com o olhar fixo através da janela. Em menos de cinco minutos, estávamos novamente na fazenda. Assim que abri a porta, o Tyson saltou logo do jipe. Entramos em casa e Rafael disparou um comentário brusco, no seu estilo habitual.
- Não se demore que estou com pressa.
Podia ter-lhe dado uma resposta torta, podia, mas não o fiz. Não ia dar-lhe a satisfação de mostrar como ele me irritava. Troquei de roupa rapidamente, escovei o cabelo e, satisfeita com a minha aparência, regressei à sala. Nem sinal de Rafael ou do cão. Sentei-me no sofá e esperei.
… (continua)

Fonte: Revista Maria
Texto: Fátima Pereira
Foto: Revista
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