O senhor Ribeiro tinha razão: o
sobrinho era mesmo trabalhador. Chegava de madrugada e saía antes das sete da
manhã. Era preciso ser mesmo empenhado no que fazia… A cozinha estava deserta
quando desci. Preparei um café e uma torrada. Enquanto comia, comecei a ficar
irritada com a cena anterior. O Rafael podia ter-se apresentado ou dito bom
dia! Até o cão tinha sido mais afável do que o dono! Ao menos, não ia ter de
conviver muito com ele! Melhor assim, estava farta de ter de manter a máscara
de simpatia.
Depois de comer, tentei ligar
para a Beta. Telemóvel desligado, como seria de esperar àquelas horas da manhã.
Voltei ao quarto, arrumei a cama e fiquei sem nada para fazer. A casa escura,
de janelas fechadas, não era acolhedora. O sol brilhava lá fora, a convidar-me
para uma caminhada.
A fazenda ainda tinha uma boa
dimensão; nas traseiras da casa, estendia-se uma plantação de videiras até onde
a vista alcançava, e elas estavam bem cuidadas, ao contrário do jardim.
Caminhei ao longo do carreiro, imersa em pensamentos. A tensão matinal
desapareceu com a vista maravilhosa para a serra… Quando dei por mim, estava
frente a um córrego de água límpida. Sentei-me com os pés dentro de água e,
pela primeira vez desde que cheguei ao Norte, senti-me contente. Deixei-me
ficar por ali, embalada pelo som constante da água, enquanto decidia o que ia
fazer a seguir. Podia regressar à casa de Rafael e esperar por notícias da
Beta. Não estava com grande vontade de ficar parada a olhar para as paredes até
que ela se lembrasse de mim. Mais valia ter ficado na cama. O primo do André
fugiu a sete pés e só o Tyson tinha sentido um genuíno interesse em mim.
A casa da dona Júlia não devia
ficar distante dali. Se ao menos tivesse fixado o caminho, podia ir andando até
lá. Assim não ficava parada à espera. Detesto esperar! Pareceu-me ser uma boa
solução. O pior que podia acontecer era perder-me e ter de andar para trás. Não
tinha nada a recear, trazia a mochila, o telemóvel e uma garrafa com água.
Convencida de que era a melhor
coisa a fazer, tirei os pés de molho e calcei os ténis. As calças azuis ficaram
sujas de terra, mas não ia importar-me com um pormenor desses. Quando cheguei
ao meio da vinha, deparei-me com um empregado do Rafael, que indicou-me um
atalho para a casa dos pais do André. Garantiu-me que, em 15 minutos, estaria
lá.
Meia hora depois, dei por mim
no meio de um pinhal. A vinha ficava a uns 20 minutos e o meu destino não
parecia ser mais perto. Aquele caminho não deveria ter muito uso. A vegetação
cobria o chão. Flores silvestres cresciam ao lado de árvores de vários tipos e
tamanhos. Se não estivesse irritada por não saber onde estava, nem que direcção
devia seguir, podia ter-me sentido tentada a explorar as redondezas.
Encontrei o riacho que o
empregado me tinha dado como ponto de referência. Segundo ele, era só segui-lo
e ia dar logo com a propriedade da família Ribeiro. Talvez tenha sido a falta
de atenção ou apenas um golpe de azar: tropecei na raiz de uma árvore e rebolei
por um declive. Fora o susto, continuava inteira. O orgulho ferido e o tecido
da túnica rasgado contribuíram para aumentar a minha irritação.
Fiquei sentada no chão durante
uns minutos. Controlei uma súbita vontade de chorar. Aquela visita ao Norte não
estava a ser nada como tinha imaginado. Nem era o contratempo de ficar na casa
de um desconhecido nem tão-pouco o facto de ele ser arrogante e mal-educado. O
meu desalento podia não ter explicação, mas também não era nada oportuno. Ao
relembrar a minha queda deselegante, o meu sentido de humor venceu a batalha.
Desatei a rir, ali sozinha, no meio do pinhal. Meti-me a caminho, desta vez com
mais atenção aos obstáculos. Mais dez minutos e estava no pátio da casa
Ribeiro. Reparei que estava um carro estacionado ao lado do meu. O pai de André
devia estar em casa. Ainda bem, assim não tinha de aturar a tagarelice da dona
Júlia.
A porta estava aberta e eu
podia ouvir vozes na cozinha. Hesitei antes de entrar. Se calhar devia chamar
primeiro, antes de invadir a casa. Provavelmente, a não ser que desse uns bons
berros, eles não me ouviriam. Acabei por entrar, com cuidado para não fazer
barulho. A minha intensão era chegar perto das escadas, que ficavam próximas da
entrada para a cozinha, e chamar pela dona Júlia. Como de costume os meus
planos deram para o torto. Com uma rapidez inexplicável, aconteceram três
coisas que me colocaram numa posição embaraçante: ouvi uma voz facilmente
identificável comentar: “Não tenho nada contra a amiga do André, mas para mim,
todas as mulheres são um problema. Quanto mais depressa ela sair da minha casa
melhor!”
Tyson surge do corredor e pula
para cima de mim; não aguentei o peso e caí desamparada em cima de um degrau.
A barulheira chamou a atenção da dona Júlia e de Rafael,
que apareceram á porta da cozinha, com um ar alarmado. Tyson continuou em cima
de mim, presenteando-me com lambidelas molhadas de alegria canina. Obedecendo à
voz de comando do dono Tyson libertou-me do seu peso.
- Grande susto que me pregou!
Como é que veio cá parar?
A dona Júlia tinha todo o
direito de saber porque é que lhe tinha invadido a casa. Mais uma vez, antes
que conseguisse responder, ela atalhou:
- O que é que lhe aconteceu?
Tem a roupa suja e rasgada! - só a
intervenção de Rafael permitiu que eu me explicasse.
- Tia, deixe a rapariga falar!
- Peço desculpa. Levantei-me
cedo e, como a Beta não atendia o telemóvel, caminhei até aqui.
- Oh, Rafael, então não podias
ter trazido a Adriana? – Era uma pergunta pertinente. Ele ficou com o mesmo ar
severo e respondeu:
- podia, se soubesse que ela
queria boleia…
Aquela resposta foi a gota de
água! Então, ele tinha-me virado as costas, sem sequer me dar os bons-dias, e
agora a culpa era minha!
- Se o senhor não tivesse saído
tão rapidamente, eu talvez tivesse tido oportunidade para pedir-lhe boleia!
A conversa tinha todos os
ingredientes para azedar. A dona Júlia percebeu que havia algo estranho e
interveio.
- Não vale a pena chorar sobre
o leite derramado. A Adriana tem de desculpar o meu sobrinho, ele não fez por
mal. Venha comer que, de estômago cheio, vai ver que fica logo mais
bem-disposta.
- Obrigada, mas não tenho fome.
Queria ver a Beta.
- Ah, mas ela ainda está a
dormir. É cedo para acordá-la.
Mais uma vez senti-me a
estorvar os planos daquela família. E a Beta nem sequer se lembrava que eu
tinha vindo com ela; continuava a dormir profundamente. Deu-me uma enorme
vontade de subir as escadas e ir acordá-la à bofetada. Sim senhora, implora-me
para vir com ela e choraminga com medo da sogra. Uma vez chegadas a Chaves, age
como se fosse normal impingir-me a casa de um desconhecido. Ainda por cima, um
desconhecido que demonstrava claramente não me querer acolher…
A minha revolta transparecia no
olhar. Rafael deve ter percebido, pois sugeriu:
- O melhor é ir mudar de roupa.
Aproveito e vou a casa buscar uns documentos que me esqueci. Pode vir comigo,
que depois deixo-a aqui.
- Boa ideia! – Dona Júlia
concordou prontamente. – Assim dá tempo para a Beta acordar. E a Adriana não
pode ir assim, nesse estado, para a cidade.
Mais uma vez decidiram o que eu
devia fazer. Apeteceu-me fazer uma birra, como uma criança pequena. O meu carro
estava mesmo ali à porta. Era só ir buscar a chave ao quarto da Beta e
escapulir-me para Lisboa. O problema é que já não tenho idade para fazer
birras. Sem outra alternativa, acedo e segui Rafael até ao jipe.
Ele não tornou a falar e eu
também não meti conversa. Limitei-me a fazer o caminho com o olhar fixo através
da janela. Em menos de cinco minutos, estávamos novamente na fazenda. Assim que
abri a porta, o Tyson saltou logo do jipe. Entramos em casa e Rafael disparou
um comentário brusco, no seu estilo habitual.
- Não se demore que estou com
pressa.
Podia ter-lhe dado uma resposta
torta, podia, mas não o fiz. Não ia dar-lhe a satisfação de mostrar como ele me
irritava. Troquei de roupa rapidamente, escovei o cabelo e, satisfeita com a
minha aparência, regressei à sala. Nem sinal de Rafael ou do cão. Sentei-me no
sofá e esperei.
… (continua)
Fonte: Revista Maria
Texto: Fátima Pereira
Foto: Revista
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