terça-feira, 28 de agosto de 2018

Um Serão a dois


Diz-se que, quando a paixão se vai, fica o amor ou o companheirismo. Anabela e Luís estavam casados há quatro anos e há muito que tinham apagado o fogo dos afectos. O que restava agora, para além das séries de televisão?
- Oh mulher, quando é que te decides a vir para a cama?
Luís estava na casa de banho, a lavar os dentes, e mostrava uma certa impaciência.
- Já vou; estou a ver a série dos médicos com o George Clooney – respondeu Anabela da sala, emocionada com o que se passava no ecrã.
- Claro tinha de ser o Clooney – explodiu ele.
- Ora, e tu gostavas de ver as Marés Vivas por causa das beldades que lá apareciam – retorquiu ela, pensando que, com tal argumento, arrumava o caso. Estava enganada.
- Não é verdade. Não era por causa das mulheres. Sempre gostei de ver aquele actor, o que tinha o carro todo artilhado e que falava.
- Pois é. Eu também vejo o Serviço de Urgência, porque gosto de ver feridos deitados em macas.
- Anda mas é deitar-te mulher – insistiu ele.
Como não obtivesse reacção, Luís foi á sala.
- Então? – Perguntou ele encostado à porta.
- Então o quê?
- Apaga o televisor.
- Chiuuu. Espera …
Anabela não estava ali. Embevecida com o desenrolar da história, tinha perdido por completo o contacto com a Terra. Nessa altura, o protagonista, de bata branca meio desabotoada, beneficiando de um ângulo de luz no rosto bem barbeado, simulava uma massagem cardíaca a um septuagenário encontrado, inanimado, minutos antes.
- Se não é o Clooney é o Rod Stewart e as suas cantiguinhas marialvas. Deve ter sido por isso que oxigenaste o cabelo. Como sabes que o gajo gosta de loiras. Pintaste o cabelo na esperança de que te leve a passear de Ferrari.
- Parvo, cala-te.
Anabela não desgrudava do ecrã e luís desesperava.
- Ainda bem que não te embeiçaste pelo De Niro, que tem queda pelas escuras. Então aí devias mascarrar-te toda com carvão ou graxa.
- Isso tudo é ciúme – disparou Anabela.
- Ciumes? Deves ser parva. Não consigo é perceber toda essa baboseira com Clooneys, Rods e outros marmanjões.
- E tu com as Pamelas Andersons? Com as Fernandas Serranos?
- Quero lá saber delas…
- Ah é? E as revistas pornográficas que tinhas no carro? Hum?
-Isso foi o Lopes que se esqueceu delas no dia em que lhe dei boleia para casa.
- Santinho.
- Não espirrei.
- Que graça.
- Não tem graça nenhuma.
E o gajo da mercearia?
- O que é que tem o gajo da mercearia?
- Diz-me tu. Rara é a vez que não tens de la voltar porque te esqueces-te do esparguete ou da margarina.
- Não mereces resposta.
Agora cala-te, que vai começar a série.
Luís ficou a remoer ameaças. Anabela concentrou-se.
- Gostava de saber para que casaste comigo. Se fosse o Clooney que aqui estivesse, já estavas na cama, toda cheirosa e de língua de fora.
- Vai mas é babar-te para cima das fotos da Pamela…
Nem completou a frase. Uma falha de electricidade lançou a casa na escuridão.
- Bolas – berrou ela.
- Ainda há justiça – proferiu Luís, enquanto puxava os cobertores até ao pescoço.
Anabela tacteou as paredes do corredor, dirigindo-se para o quarto.
- E agora? – Perguntou ela.
- Agora o quê? Vai acender uma vela e lava os dentes.
- Tu devias ir para a tropa.
Pareces um sargento. E que conversa foi aquela do merceeiro? Estás a passar-te?
- Tu é que me fazes passar da cabeça com as tuas manias dos actores e dos cantores.
- És tu que me dizes isso, que não podes ver uma “burra de saias”.
- Oh Anabela, e se nos deixássemos de discussões e aproveitássemos este escurinho bom?
Luís tirou o braço debaixo dos cobertores e tentou tocar Anabela.
- Está quietinho, que não estou com disposição para brincadeiras.
- Ah é? Dói-te a cabeça, por acaso? É o costume, aliás.
- Que engraçado. E tu, quando te queixas de que estas cansado? Que tens tido muito stress no emprego?
Luís ia responder, mas Anabela já retrocedera, saindo do quarto em busca de uma vela. Foi nesse momento que a luz veio. Ambos ficaram satisfeitos. Ele foi-se pôr atrás de Anabela, entretanto ocupada a lavar os dentes.
- Anda cá meu anjinho cheiroso – disse ele.
- Que queres? – Perguntou ela, adoçando o olhar.
- Ainda é cedo. Podíamos fazer qualquer coisa.
- O quê?
- Não sei. Podíamos ir até à praia e fazer amor no carro, junto às arribas.
- Não, está frio e ainda tínhamos de fazer uns 20 ou mais quilómetros. Só se for uma saída para irmos dançar.
- Dançar? Dói-me um pé. E detesto pagar uma fortuna por um dedo de uísque e quilos de gelo.
Ficaram os dois pensativos por um bocado. Depois, em simultâneo, disseram:
- Amo-te.
Riram e beijaram-se. No minuto seguinte, estavam pregados frente ao televisor, abraçados. Assim ficaram o resto do serão, a ver um filme como Van Damme.

FIM
Fonte: Revista Maria
Texto/ Autor : V.F.F
Foto da revista
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