quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A Árvore Sagrada


A velha estava no meio do terreiro, de pé, muito direita, com as mãos na cabeça. À sua volta, o povo apinhava-se, em silêncio. Todos esperavam numa grande impaciência, que ela falasse. Só da sua boca se poderia saber a verdade amarga, para que se fizesse luz sobre a noite que tombara como uma maldição na senzala e na vida do seu povo miserando, porque fôra ela a única pessoa que presenciara a cena. Mas a velha não pode falar. A comoção embarga-lhe a voz. E está possuída de medo e de pavor.
Os homens abeiram-se mais, e têm os olhos obstinadamente fixos no seu rosto transfigurado, brilhante de suor, os olhos arregalados a ganharem brilho de cristal, a boca torcida a espumar pelos cantos. Quere falar, gritar a toda a gente o seu pavor, mas sente a garganta a apertar-se-lhe e a boca cada vez mais seca e amarga. Levou as mãos, sacudidas de tremuras, à garganta, mas logo as desceu ao peito, a querer acalmar as pancadas desordenadas do coração.
E eles, com os olhares fechados nos seus olhos atónitos, nada lhe perguntaram. Não podiam falar. Também têm medo de abrir a boca. E se o fizessem, decerto nada lhe perguntariam, porque neles só há gritos abafados pelo pavor.
Mas ninguém pode suportar por mais tempo a angústia do silêncio que ensombrou o povo.
A velha fez um esforço enorme e, por fim tartamudeou:
- Caíu… eu vi… não sei… vi… - olhava, com uma expressão de louca, para todos os lados, sem saber onde punha os olhos, sem ver nada.
- Caíu…
Um velhote afastou, com modos bruscos, os homens que estavam à sua frente, chegou-se à velha e pôs-lhe uma mão no ombro. Ao contacto daquela mão, que mal a tocou, a mulher deu um salto para trás e sacudiu-se num grito que ecoou nos longes da estepe onde se acachapa a aldeola. E a multidão recuou. Só o velhote sem se mexer.
Volvidos uns segundos, ele perguntou-lhe com uma voz aparentemente calma:
- Quem é que estava com ele?
Ela abriu muito os olhos, vidrou-os com lágrimas e pôs-se a tremer como uma criancinha medrosa; e foi muito a custo que balbuciou:
- Ali… ali… - E os seus braços estenderam-se para a frente, e ficou-se com as mãos abertas a tatear o espaço. Depois a boca encheu-se-lhe de espuma e não pôde dizer mais nada.
O silêncio que caiu carregou-se de mistério. De longe, lá do fundo da senzala, veio chegando uma toada de choro, que ficou a pairar sobre o povo. Os homens, com os olhos no chão, foram-se afastando para o lado oposto de onde vinha o choro das carpideiras e das mulheres do soba.
Então, a velha acordou do seu espanto para romper num choro sonoro e convulsivo. O homem que lhe falara abeirou-se, tomou-a por um braço e disse-lhe, em voz baixa:
- Vamos, Nhacange.
Deixou-se levar, sem uma palavra. O velhote conduziu-a para a porta da sua cabana, onde a sentou sobre uma esteira. Entrou no colmado, para logo regressar com uma mutopa. Carregado o cachimbo-de-Água com tabaco misturado com cânhamo, acendeu-o e, depois de encher a boca desdentada com várias fumaças, passou-o á velha. Ela fumou em silêncio; e lentamente seu rosto serenou, apagou-se-lhe o brilho cristalino dos olhos e os movimentos tornaram-se vagarosos.
Inclinado sobre o seu ombro, o velho perguntou-lhe:
- Como foi?
Nhacange pôs o cachimbo no chão, deixou cair as mãos no regaço, e, depois de suspirar fundo, disse numa voz lenta:
- Ele saiu de casa muito zangado com as suas mulheres; e ficou a insultar toda a gente.
- Estava bêbedo?
- Não, Xapinda, não estava. Estava só zangado. Quando me viu, gritou assim: «Oh velha, tu já viste uma mulher gritar com o seu homem?! É preciso matar essa velha muári».
- E depois? – Perguntou o velhote, a tremer de inquietação, com os olhos a chisparem.
- Depois, veio a andar para mim, mas quando chegou ali – e ela apontou para a chota – ficou com a cabeça deitada para trás e caiu todo direito, como um pau. Ficou no chão sem se mexer. Nem gritou!
Calaram-se. O choro continuava a vir das cubatas do soba e de suas mulheres, como uma ladainha.
- Foi o sol que o matou… - disse Nhacange, baixando os olhos.
O velho meneou a cabeça e apertou violentamente os lábios. Perguntou com voz dura:
- E depois?
- Eu estava a gritar quando as mulheres dele o levaram.
- E a muata-muári?
- Não vi, Xapinda; não vi. Não saiu da sua casa.
Após um grande silêncio, a velha disse, pausadamente, os olhos a carregarem-se de lágrimas:
- Ele era um homem bom. Não havia outro como ele. Não era?
O homem disse muitas vezes que sim, com rápidos movimentos de cabeça.
-Ele vai ficar com a sua gente – sentenciou Xapinda, depois de longo silêncio.
Nhacange olhou-o abrindo muito os olhos; depois, sorriu de modo compreensivo e disse:
- Sim. Ele era bom.
Xapinda deixou-a. E quando chegou a meio do terreiro, chamou o Camuári, que estava entre a multidão.
O velho e o moço deixaram a aldeia.

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O soba está morto.
O luar branqueou a terra, e o vento leve que vem do descampado, mal balanceando os cimos do capinzal, arrasta pela estepe longínqua o som dos tambores que choram a morte do chefe que governou com justiça, e que por isso mesmo, passou a viver na saudade do seu povo.
Choram os tambores nas bocas dos caminhos das senzalas, convidando à dor os homens que, nas aldeolas perdidas na estepe, os escutam. As mulheres gritam á volta do cadáver o seu desespero e amargura. E além, dentro da noite de uma mata, em redor dos clarões de uma fogueira, rezam os feiticeiros.
E todos sentem que o soba está mais perto deles. A dor do povo engrandeceu o homem que a morte sentou. A sua memória já se quedou na história do povo. Amanhã, depois de dançado o batuque fúnebre, os cantadores irão, de aldeia em aldeia, sertões em fora, cantar a canção da sua vida e da sua morte. Mas quando os homens que o viram e amaram, porque foi justo para a sua gente e cruel para o inimigo, já não existirem, a sua história, adulterada pela imaginação das velhas contadoras de rimances e dos cantadores, volver-se-á em lenda. E se um dia o fogo rolar pela senzala e fizer das árvores cinzas, tornando aquele chão terra abandonada, onde ninguém porá o sentido, ainda serão os velhos que o conheceram, quem guardará, para transmitir à sua gente e aos moços viandantes que pernoitem na sua nova terra e aldeia, a lenda desse soba que teve senzala na estepe lunda, em recuados tempos, e que morreu de feitiço… e eles não deixarão, de regresso ao seu povo, de cantar, ao som dolente e nostálgico dos quissanjes, a lenda feita canção.

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Calaram-se as vozes dos tambores.
O sol espelha a sombra das árvores no terreiro, onde o povo, em magote, segue, com os olhos maguados de medo, a cerimónia a que estão entregues os feiticeiros, acocorados à volta de uma árvore de culto. Falam monotonamente, numa linguagem que só eles compreendem – eles e os espíritos a quem se dirigem. E quando se calaram, ficaram a olhar, com uma fixidez que os absorveu por completo, para a árvore mantendo uma postura de encantadores de serpentes. Ao seu lado, brilham as lâminas das facas, depostas sobre a mascara dura, talhada num madeiro enterrado junto á árvore de culto, do deus Camuári, o deus da morte. E só quando das bandas da moradia do soba se levantou um chamado, é que eles se moveram, lentamente, mas logo voltaram à mesma posição. Minutos depois, vários homens, gente grada, trouxeram, sobre uma padiola, o cadáver do soba, envolvido em folhas. Quando eles chegaram ao pé dos feiticeiros, depuseram o corpo do soba à sombra da árvore de culto, sob a protecção do deus Camuári. E fez-se silêncio.
Nhacange, enrodilhada a um canto da sua cubata, está a chorar as últimas lágrimas. Logo, ela irá cantar, na roda do batuque, a canção da vida e da morte do seu soba:
Na casa onde o chefe do povo habitou durante largos anos, as suas viúvas já não têm mais lágrimas. Estão caídas pelos cantos, a gemerem a sua dor.
E além, à beira do caminho público, o velho Xapinda, ajudado por alguns moços, acaba de erguer a cubata que receberá o corpo do soba, depois dos feiticeiros lhe roubarem a alma.
Xapinda está a ouvir o som das facas a vibrarem golpes na árvore, enquanto os feiticeiros, com exortações e rezas, procedem à transladação do espírito do soba, apelando para a protecção dos deuses e dos espíritos bons dos sobas, cuja vida ficou para sempre na memória do seu povo. Depostas, de novo, as facas aos pés de camuári, os feiticeiros prestaram culto, acompanhados por todo o povo, á árvore sagrada onde passou a viver o espírito do soba.
E amanhã, e sempre, os lundas dessas bandas dirigir-se-ão aos manes dos seus antepassados, por intermédio do espírito do soba, cativo dessa árvore de culto por amor do seu povo.

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Castro Soromenho (Do livro «Rajada e outras histórias»)
Foto do texto
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