terça-feira, 24 de abril de 2018

A Gota de Chuva


Era uma vez uma gota de chuva. Apareceu com os primeiros raios de sol e era tão redonda, brilhante e transparente que parecia uma pedra preciosa esquecida por uma fada numa pétala de rosa.
Enquanto as outras gotas falavam e se divertiam a deslizar pelas folhas de outras plantas do jardim, a gota redonda nem se mexia. Não queria estragar a sua forma e temia que o mais pequeno movimento a dividisse em muitas gotinhas sem o mesmo brilho.
Um beija-flor, que saiu do seu esconderijo com a claridade que veio depois da chuva, aproximou-se da rosa para provar o seu néctar. Mas a gota redonda pediu-lhe para ir tomar o pequeno-almoço noutro lado.
O movimento rápido que o pássaro tinha de fazer com as asas para se equilibrar no ar podia fazê-la rebolar pela pétala abaixo e cair no chão.
O beija-flor reconheceu que era muito bonita e, como nunca lhe tinha feito um pedido semelhante, acedeu ao desejo da gota. Ainda que lamentasse perder um sumo tão delicioso, virou-se, deu uma vista de olhos pelos canteiros e voou rapidamente em direcção às camélias.
Pouco tempo depois um mosquito aterrou numa folha da roseira. Tinha a garganta seca por ter feito uma longa viagem desde o pinheiro onde dormia, e pensou que aquela água era do tamanho ideal para acabar com a sua sede.
A gota redonda pediu-lhe para ir beber à poça de água formada na terra, ao pé das raízes da buganvília, pois tinha visto outros insectos voarem nessa direcção e o lugar devia ser mais do seu agrado. O mosquito que gostava de beber em boa companhia, concordou e fez um voo picado até ao charco, onde encontrou alguns amigos que já lá estavam desde a madrugada.
A gota suspirou aliviada e descansou alguns minutos de todos estes contratempos.
O sossego durou pouco porque de repente viu avançar na sua direcção uma aranha com idade para ter teia própria. Vinha devagar tecendo a linha da sua rede com cuidado, tentando não se enganar nas voltas para não ficar presa na sua própria armadilha. Faltava-lhe pouco para acabar a sua primeira obra e, quando olhou em frente, viu que a folha no alto da roseira era o lugar ideal para lançar o fio mais comprido.
A gota tentou afastar o perigo explicando os seus porquês. A aranha, que era muito resmungona, ficou zangada por ter de refazer uma parte do trabalho por causa de uma gota maçadora e, depois de  uma troca de palavras desagradáveis, continuou a tecer a rede com a baba que saia da sua boca para esse efeito.
Mas a gota teimosa encontrou tantos argumentos para a dissuadir, que a aranha farta de ouvir um nunca-acabar de palavras que lhe cortavam a inspiração, decidiu mudar de rumo e poisar a última ponta da teia na glicínia.
Enquanto continuava redonda e brilhante, sem se mexer, pensava como era difícil a vida naquele jardim. Tinha de lutar pela sua sobrevivência com toda a imaginação e usar o poder da palavra para se defender dos mais fortes.
Das gotas brincalhonas não ficavam nem rastos, teve os seus momentos de inveja ao ouvi-las rir e cantar, mas agora não se arrependia de todos os seus cuidados. Afinal, ainda lá estava no mesmo lugar em que tinha caído do céu. Um caracol dorminhoco que não gostava de madrugar acordou com o piar de uns pardais que disputavam os bagos de arroz espalhados na noite anterior à volta da gamela do cão. Pôs as antenas de fora, esticou o pescoço, olhou em redor e decidiu dar um passeio. Nada melhor para começar bem o dia do que escalar uma planta. A roseira onde tinha passado a noite parecia-lhe mais indicada. O seu talo era largo, liso e tinha poucos espinhos.
Começou a subir lentamente deixando ao passar um largo rasto de baba brilhante. Foi esse brilho que alertou a gota de água da chegada do caracol. Por enquanto estava no principio da subida e não corria perigo, mas perto dela o talo era mais fino e, á medida que se aproximasse o peso do caracol faria tremer as flores e provocaria a sua queda.
Gritou com todas as forças da sua voz de água mas o caracol não a ouviu. Prosseguia o seu passeio matinal parando em cada ramo para apreciar a vista, pouco interessado no que se passava lá em cima. Tanto se esforçou a gota para chamar a atenção do caracol que quase perdeu o equilíbrio e, se não tivesse tanto medo de ficar reduzida a uma mini gota, teria começado a chorar.
Tão ocupada estava em não desviar o olhar do trajecto do novo invasor, ela que tinha corrido tantos perigos pequeninos, que não teve tempo de pensar no maior de todos: o sol.
Pouco a pouco, enquanto a gota estava distraída, o sol fez-se mais quente e foi evaporando a sua água, e quando deu por si já estava outra vez sentada numa nuvem rodeada de milhões de gotas vaporosas, prontas a deixarem-se cair quando lhes chegasse a ordem de chover.


FIM

Fonte: Revista Terra do Nunca
Texto/Autor: Cristina Norton – Do Livro “O barco de chocolate”.
Foto da revista
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