Devido ao Maio, que mais o
emeravilheceu, o parque, cheio de aroma e frescor, tornou-se um espectáculo
digno de grande apreço. São, por isso muitos agora os espectadores.
Para apanhar o meu lugar
predilecto. Encostado a um caniçal que fragilmente defende um acampamento
soberbo de rosas, e d’onde se escutam os puríssimos conselhos da água que,
activa, serpenteia a refrescar as flores e os arbustos, tenho de me apressar a
chegar cedo: procedimento êste que os melros madrugadores marotamente me
agradecem, jogando às escondidas com meu olhar que os persegue.
Como um general cuidadoso,
um dos jardineiros informa-me minuciosamente, do estado das suas hostes, e
participa-me com zelos de enfermeiro dedicado, as melhoras das doentes, a cura
das convalescentes, as sentenças das desenganadas, enumerando-me os óbitos, os
nascimentos e, até, os idílios e as rixas, que há na vida dos jardins como na
vida do mundo.
É um bom filósofo o velho
jardineiro do parque! Como a todo o bom filósofo, a mulher enganou-o.
Resignou-se, ao cabo de dois anos e, ainda, como bom filósofo, enterrou-a outro
dia, por sua conta, como se enterram as honestas.
Dantes era pedreiro.
Quando lhe sucedeu o conjugal percalço, ficou com uma filha a seu cargo; filha
que se prendeu de amores por um galucho, que a perdeu, e foi depois rolando
para o enxurro, amaldiçoada pelo pai, que ia morrendo de vergonha.
Naquele dia pesaroso, em
que a pequena fugiu com o soldado, o sr. Francisco, assim se chama o simpático
velho, desgostou-se da antiga profissão:
- Eu era pedreiro, como o
senhor sabe! – Explicou-me êle – Vivia de fazer casas para os outros. Mas desde
a hora negra em que a minha Rosa me abalou com aquêle malvado, deixando o pai
para ali, a um canto, sem dizer água vai, tomei azar ao ofício. Fazer casas!
Para quê? Ralava-me eu bem, agora, de arranjar casas para os outros, quando não
sabia concertar a minha! Podia lá ser!... Só se fizesse um jazigo! Mas para nós,
os pobres, o jazigo faz-se, com duas pásadas, à mesma da hora… Que quer?
Meteu-se-me na cabeça uma
cisma um enguiço, com que me não atrevi! Entrei de parafusar que aqueles dois –
eu nem gosto de falar nisso! – Haviam de ir, um dia, morar para uma casa feita
com estas mãos, que não souberam esganar aquele patife. E ser eu, com as
paredes que levantasse, o encobridor daqueles desavergonhados? Nada, não
senhor! Nem que tivesse de pedir esmola! Vivessem ou morressem! Para mim tanto
fazia… E é que não tive ânimo de pegar na ferramenta! Pedras? Só se fôse para
rachar com uma a cabeça daquele alma danada!...
- E fez-se então
jardineiro?
- É verdade. Que remédio!
Velho, cansado, só como um badalo de sino, cá vim parar às minhas ricas flores!
Perdi a minha Rosa lá isso é certo! Uma rapariga que, até aquêle diabo lhe
aparecer, ninguém tinha nada que lhe dizer… Pois fiquei sem ela! Mas arranjei
aqui outra família.
- E outras Rosas…
- Também é verdade. Olhe
que as flores são tal qual a gente! Mais feitio, menos feitio, é tudo a mesma
coisa. Elas nascem, elas morrem, elas lá se namoram, lá se casam, lá se zangam
umas com as outras… Como a gente, sem tirar nem pôr. Algumas teem boa cabeça e
governam-se. Outras, o senhor faz lá ideia! Há cada uma…
- Que fazem elas sr.
Francisco?
- Que fazem? Tolices,
asneiras, até crimes como nós…
- Ora conte lá!
- São histórias muito
curiosas! Olhe, ainda não há uma semana, ali à borda do lago! Está lá uma
roseira – não sei se o senhor já viu! – Que parece, a tamanhinha, nasceu nos
dias pequenos. Trato-a com muito cuidado, porque ela, tão enfezadinha, deve
ser, a modos, aleijada.
Que as flores
também teem os seus males, como a gente!
- E depois?
- Nestes anos
atrás, tem corrido tudo muito bem. As flores nascem fracotas, mas bonitinhas, e
como a mãe tem pouca força, mal vejo uma, aberta, vou-me a ela e corto-a. Guardo-a
depois para o sacristão, que vem aí quási todos os dias à procura delas.
Mando-as para a igreja a ver se, como são tão doentinhas, os santos lhes dão
mais saúde. Mas qual história! Ou os santos estão a dormir, ou não as vêem com
o escuro que lá faz dentro, ou então é o homem que as não põe no altar. Que eu
já ouvi dizer que êle anda metido com uma galdéria bexigosa, que eu vi de vela
na mão, quando foi da festa da freguesia.
- Um sacristão
também tem direito à vida, sr. Francisco!
- E à pouca
vergonha, que esta vida é quási sempre.
- É pessimista o
sr. Francisco!
- Lá o que sou, não
sei. Mas tenho visto muito mundo e pouca gente direita.
- E a história da
roseira?
- Ora deixe-me cá,
senhor! No sábado, apareceu-me, muito linda, com um botão maior que o costume.
Até vergava a haste. Não tive coragem para o cortar. Vou-me a êle, e
endireitei-o, bem especado; porque aquilo estava perigoso, por ser à borda do
lago. Volto no domingo, e dou com o diabo do botão, que já começava a abrir,
outra vez fora do seu lugar e debruçado para a água.
Parecia querer
tomar um banho, o teimoso! Tornei a endireita-lo com mais geito. Pois não quer
o senhor saber! Na segunda-feira, ia, muito cônscio da minha vida, com a
navalha aberta, para o trazer e imagine o senhor!...
- Tinham-no
roubado?
- Peor! Muito peor!
A rosa abrira durante a noite, e devia ser famosa! Mas, não sei lá como;
desfolhara-se logo ao abrir, e fôra parar ao lago. Ainda vi as suas pétalas,
muito juntinhas a boiar. Sempre tive um desgosto! A doida! Veja lá o senhor!
Não foi boa para ela, nem para ninguém.
- Quer dizer que se
suicidou?
- Sei lá! Era sina.
Tinha de se perder.
- Pobre rosa!
- Já vê o senhor
que elas são tal e qual a gente! E agora, até logo, que vou à rega!
- Que pena que o
orvalho não cure a má cabeça das rosas, sr. Francisco!
- Se assim fosse,
meu senhor, há muito que a minha Rosa teria tornado a ser minha filha! Bastantes
lágrimas me tem feito verter! – Disse-me em remate o velho jardineiro, voltando
as costas, e tirando do bolso o seu lenço de quadrados…
Fonte: Almanaque
Bertrand, 1940
Texto/Autor: Manuel
de Sousa Pinto (Trecho do livro «O Jardim das Mestras»)
Foto da net
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