segunda-feira, 8 de maio de 2017

Suicídio de uma rosa


Devido ao Maio, que mais o emeravilheceu, o parque, cheio de aroma e frescor, tornou-se um espectáculo digno de grande apreço. São, por isso muitos agora os espectadores.
Para apanhar o meu lugar predilecto. Encostado a um caniçal que fragilmente defende um acampamento soberbo de rosas, e d’onde se escutam os puríssimos conselhos da água que, activa, serpenteia a refrescar as flores e os arbustos, tenho de me apressar a chegar cedo: procedimento êste que os melros madrugadores marotamente me agradecem, jogando às escondidas com meu olhar que os persegue.
Como um general cuidadoso, um dos jardineiros informa-me minuciosamente, do estado das suas hostes, e participa-me com zelos de enfermeiro dedicado, as melhoras das doentes, a cura das convalescentes, as sentenças das desenganadas, enumerando-me os óbitos, os nascimentos e, até, os idílios e as rixas, que há na vida dos jardins como na vida do mundo.
É um bom filósofo o velho jardineiro do parque! Como a todo o bom filósofo, a mulher enganou-o. Resignou-se, ao cabo de dois anos e, ainda, como bom filósofo, enterrou-a outro dia, por sua conta, como se enterram as honestas.
Dantes era pedreiro. Quando lhe sucedeu o conjugal percalço, ficou com uma filha a seu cargo; filha que se prendeu de amores por um galucho, que a perdeu, e foi depois rolando para o enxurro, amaldiçoada pelo pai, que ia morrendo de vergonha.
Naquele dia pesaroso, em que a pequena fugiu com o soldado, o sr. Francisco, assim se chama o simpático velho, desgostou-se da antiga profissão:
- Eu era pedreiro, como o senhor sabe! – Explicou-me êle – Vivia de fazer casas para os outros. Mas desde a hora negra em que a minha Rosa me abalou com aquêle malvado, deixando o pai para ali, a um canto, sem dizer água vai, tomei azar ao ofício. Fazer casas! Para quê? Ralava-me eu bem, agora, de arranjar casas para os outros, quando não sabia concertar a minha! Podia lá ser!... Só se fizesse um jazigo! Mas para nós, os pobres, o jazigo faz-se, com duas pásadas, à mesma da hora… Que quer?
Meteu-se-me na cabeça uma cisma um enguiço, com que me não atrevi! Entrei de parafusar que aqueles dois – eu nem gosto de falar nisso! – Haviam de ir, um dia, morar para uma casa feita com estas mãos, que não souberam esganar aquele patife. E ser eu, com as paredes que levantasse, o encobridor daqueles desavergonhados? Nada, não senhor! Nem que tivesse de pedir esmola! Vivessem ou morressem! Para mim tanto fazia… E é que não tive ânimo de pegar na ferramenta! Pedras? Só se fôse para rachar com uma a cabeça daquele alma danada!...
- E fez-se então jardineiro?
- É verdade. Que remédio! Velho, cansado, só como um badalo de sino, cá vim parar às minhas ricas flores! Perdi a minha Rosa lá isso é certo! Uma rapariga que, até aquêle diabo lhe aparecer, ninguém tinha nada que lhe dizer… Pois fiquei sem ela! Mas arranjei aqui outra família.
- E outras Rosas…
- Também é verdade. Olhe que as flores são tal qual a gente! Mais feitio, menos feitio, é tudo a mesma coisa. Elas nascem, elas morrem, elas lá se namoram, lá se casam, lá se zangam umas com as outras… Como a gente, sem tirar nem pôr. Algumas teem boa cabeça e governam-se. Outras, o senhor faz lá ideia! Há cada uma…
- Que fazem elas sr. Francisco?
- Que fazem? Tolices, asneiras, até crimes como nós…
- Ora conte lá!
- São histórias muito curiosas! Olhe, ainda não há uma semana, ali à borda do lago! Está lá uma roseira – não sei se o senhor já viu! – Que parece, a tamanhinha, nasceu nos dias pequenos. Trato-a com muito cuidado, porque ela, tão enfezadinha, deve ser, a modos, aleijada.
Que as flores também teem os seus males, como a gente!
- E depois?
- Nestes anos atrás, tem corrido tudo muito bem. As flores nascem fracotas, mas bonitinhas, e como a mãe tem pouca força, mal vejo uma, aberta, vou-me a ela e corto-a. Guardo-a depois para o sacristão, que vem aí quási todos os dias à procura delas. Mando-as para a igreja a ver se, como são tão doentinhas, os santos lhes dão mais saúde. Mas qual história! Ou os santos estão a dormir, ou não as vêem com o escuro que lá faz dentro, ou então é o homem que as não põe no altar. Que eu já ouvi dizer que êle anda metido com uma galdéria bexigosa, que eu vi de vela na mão, quando foi da festa da freguesia.
- Um sacristão também tem direito à vida, sr. Francisco!
- E à pouca vergonha, que esta vida é quási sempre.
- É pessimista o sr. Francisco!
- Lá o que sou, não sei. Mas tenho visto muito mundo e pouca gente direita.
- E a história da roseira?
- Ora deixe-me cá, senhor! No sábado, apareceu-me, muito linda, com um botão maior que o costume. Até vergava a haste. Não tive coragem para o cortar. Vou-me a êle, e endireitei-o, bem especado; porque aquilo estava perigoso, por ser à borda do lago. Volto no domingo, e dou com o diabo do botão, que já começava a abrir, outra vez fora do seu lugar e debruçado para a água.
Parecia querer tomar um banho, o teimoso! Tornei a endireita-lo com mais geito. Pois não quer o senhor saber! Na segunda-feira, ia, muito cônscio da minha vida, com a navalha aberta, para o trazer e imagine o senhor!...
- Tinham-no roubado?
- Peor! Muito peor! A rosa abrira durante a noite, e devia ser famosa! Mas, não sei lá como; desfolhara-se logo ao abrir, e fôra parar ao lago. Ainda vi as suas pétalas, muito juntinhas a boiar. Sempre tive um desgosto! A doida! Veja lá o senhor! Não foi boa para ela, nem para ninguém.
- Quer dizer que se suicidou?
- Sei lá! Era sina. Tinha de se perder.
- Pobre rosa!
- Já vê o senhor que elas são tal e qual a gente! E agora, até logo, que vou à rega!
- Que pena que o orvalho não cure a má cabeça das rosas, sr. Francisco!
- Se assim fosse, meu senhor, há muito que a minha Rosa teria tornado a ser minha filha! Bastantes lágrimas me tem feito verter! – Disse-me em remate o velho jardineiro, voltando as costas, e tirando do bolso o seu lenço de quadrados…

Fonte: Almanaque Bertrand, 1940
Texto/Autor: Manuel de Sousa Pinto (Trecho do livro «O Jardim das Mestras»)
Foto da net
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