Os
cães vadios chegavam em bando, vindos do escuro do pinhal, magríssimos,
amarelos ou cinzentos, com feridas no lombo e de nariz junto à terra, a
murmurarem. Aproximávamo-nos e fugiam com medo. Comiam pássaros mortos,
carcaças de coelho, detritos. Às vezes, ao crepúsculo, sentia-os à volta da
casa, procurando os sobejos do lixo no caixote: restos de frango, ossos,
farrapos de embalagens de margarina, caroços de fruta. De tempos a tempos
soluçavam, não ladravam nunca. Um deles, de pata mirrada no ar, caminhava com
as outras três e as velhas, sentadas de lado nos burros, ameaçavam-nos com a
bengala. Ou então dava com os cães de roda da capoeira a mirarem as galinhas. A
cozinheira achava que eram almas penadas de gatunos. Os miúdos matavam-nos à
pedrada, sob os castanheiros, e os animais ficavam para ali, cheios de moscas,
a enterrarem-se sozinhos: quando não se enterra uma coisa viva a coisa
sepulta-se sem ajuda, a pouco e pouco. As formigas auxiliam. E umas lagartas
esquisitas, esbranquiçadas: tantos mistérios no mundo. Os arco-íris, por
exemplo, ou os milhafres da montanha, quietos lá em cima, a escolherem o vento.
Tornei a dar por eles em África. Pelo menos parecam.me eles, só que maiores e mais imóveis ainda. A
única coisa que me surpreendia era a cozinheira não estar lá, a repetir
-
Os milhafres
Pasmada.
Um dia adoeceu do peito e levaram-na. Desceu as escadas amparada a dois
bombeiros. Lembro-me das pantufas e de segredar, pela dificuldade de boca
-
Não tornaremos a encontrar-nos menino.
E
não tornámos a encontrar-nos, realmente: o hospital de Viseu tão longe. Tudo
tão longe nesse tempo, as caras dos adultos quase junto ao tecto, as cadeiras
enormes e o mundo a encolher com os anos. Quando fica pequeno adoecemos nós: já
vão sendo horas de arranjar umas pantufas.
Aqui,
onde estou, a noite treme: não são as árvores, não são as sombras, não é a
roupa, pendurada nos fios, que mal se distingue: quem treme é a noite.
Move-se
devagarinho na direcção de quê’ uma ambulância a chorar na avenida, coroada de
lâmpadas azuis e encarnadas: deve ser a cozinheira a atravessar Lisboa.
Lucília. A mala dela debaixo da cama, quase vazia, uma santinha fosforescente
no vão da janela, brincos de pobre numa latita. Cheirava a lenha e a azedo,
começava a ter rugas em torno da boca: se durasse uns meses mais tornava-se uma
velha sentada de lado no burro a ameaçar os cães vadios com a bengala. Ao
almoço tiravam uma batata crua do xaile e principiavam a roer-lhe a casca numa
lentidão avarenta, enquanto os maridos, de boné, arrastavam a bota esquerda no
largo. Reparando bem como a noite treme. Ou será a minha mão no papel? Avança e
recua na cadência do sangue e eu a dilatar-me e a encolher-me com ela. Vontade
de lhe chamar diminutivos: noitinha. Tão bonitos os diminutivos na nossa
língua. Noitinha. Não tornamos a encontrar-nos, menino. E os brincos de pobre
que não saem da ideia, a ferrugem na latita. Em cada ambulância é ela a
circular na cidade, sem repouso. Não há hora que não a oiça, à roda, à roda. Se
me aproximasse da ambulância fugiria com medo, como os cães? Ou levava-me à
despensa
-
Apetece-lhe um quadradinho de marmelada?
e
ficava a ver-me comer, muito séria. Que queres de mim, noitinha, que não paras
de chamar-me? Oiço o meu nome. Oiço o pêlo do tapete crescer, devo sentir-me
sozinho, sinto-me sozinho, noitinha, confesso que me sinto sozinho: não há por acaso um burro aí para eu me
sentar de lado com a minha batata no xaile? Roê-la mesmo crua, mesmo com casca?
Cheirar a azedo e a lenha? Os milhafres em Portugal, os milhafres em África. As
cadeiras enormes, tudo enorme. Apagar as luzes e ficar na casa vazia, de olhos
abertos, à espera que qualquer coisa venha e me leve, não importa para que
sítio desde que seja longe, onde ninguém me chama. De qualquer maneira, mesmo
que permaneça á secretária, ninguém há-de chamar-me.
Fonte:
Revista Visão
Texto/
Autor: António Lobo Antunes
Foto:
Susana Monteiro/re-searcher.com
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