segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O Gil Sapateiro


Poh! Poh! Poh! – Fogem as galinhas, as vacas ensaiam uma corrida para a valeta, e ficam muito admiradas que os monstros tenham passado e elas quedem incólumes, sem lhes quebrarem sequer uma perna. A tia Maria Quitéria vem ao cancelo coscuvilhar. Estacaram, afinal com grande rompante e aparato senhorial, diante da taverna, os três automóveis. Podengos, grevas, escopetas em seus estojos, luvas amarelas, chapéus de pano inglês aos quadradinhos, é uma tartarinesca comitiva de caçadores. Largaram com a alva de Viseu, de Aveiro, do Porto em batida à serra, onde dizem que as perdizes são bastas a dar com um pau e os coelhos dançam a raspa nas clareiras.
- Venha o Gil Sapateiro!
O Gil Sapateiro, Nenrod impenitente sob os olhos do Eterno, não se faz rogar duas vezes. Ele é o guia encartado da Nave, tal como os dos Alpes, para toda a expedição cinegética que se preza. Ninguém conhece os andurriais melhor do que ele, e antes de mais nada chama-se uma espingarda de respeito. Os caçarretas da cidade é que são insuficientemente compreensivos e, em vez de lhe passarem para as mãos uma sarrasqueta suplementar, fazem-no alombar com o farnel, embora carregado de bons vinhos velhos e iguarias de lhes lamber o beiço, de que será comparte irmãmente. E ele então vinga-se. Vinga-se à maneira do Lazarilho de Tormes. Guia os belos caçadores pelas escarpas onde não tarda que deitem os bofes com as íngremes escaladas. Providencialmente lá está o manancial de água pura, e toca a beber. Bebem, fumam, lançam duas chalaças ao vento. Uns minutos de repouso, e ala mais arriba por trilho não menos excomungado, trepando morro após morro. Mas se o piso é áspero, as fontes a cada passo rompem da rocha, com a sua veia de cristal puro ou entoando a branca ladainha. Como o lobo da fábula, volvem a beber e nova cigarrada.
À hora de almoço, depois de tanta pançada na água, quando o estendal das comezainas rescende que consola e o vinho rutila nos copos, quem tem apetite de comer e de beber? O Gil. O Gil tira-lhe o ventre de misérias, aquela miséria ancestral, filha da sua condição e temperamento. Não é o perfeito lazarone, mas, para ele gaspear umas botas é operação mais custosa que palmilhar uma área de duas léguas debaixo de neve ou com o cieiro a cortar as orelhas como a navalha do Zé da Lajas, que leva coiro e cabelo. O Gil Sapateiro bebe no sangue generoso de Cristo como uma sanguessuga, como um areal no pino do Verão, como a equipagem de uma escuna inglesa na Travessa do Cotovelo. Caçada… de grilo!
O Gil sapateiro nem sempre leva a sua vingança até fecho. Posto que meio turvo do juízo, não raro pede a hamerless ao mais cansado ou mais desiludido dos caçadores, e encaminha a malta para trás de um cerro, logo ali a breves passos:
- Estamos no reino das perdizes. Agora é bombear-lhes, meus senhores!
Ao fim do dia, o Gil Sapateiro fez, ele só, mais cinto que todos juntos.
Um ano, o que não sucedia desde o princípio do seu mundo, o Gil Sapateiro tirou licença de caça e porte de arma. Era caçador furtivo acabado por contumácia e opinião, mas tantas emboscadas lhe armou a Guarda de três concelhos, tantos autos lhe ergueu, tanta gente ele incomodou para não malhar com os ossos na cadeia, que se resignou a pôr-se quite com a lei. Esportulou-se, mas não perdoou aos seus zelosos agentes. Gil é o turdetano que trás em dia as suas dívidas de gratidão e de ódio. Quando pelo monte lhe luziam ao largo os capacetes da Guarda, simulava de transgressor. A serra era grande e ele tinha pernas de gamo. Mais ele corria, mais as praças lhe corriam no encalço. Quando sentia que estavam esfalfadas, que rebentariam se lhes pusessem a mão na boca, detinha-se e desatava a berrar aos cães:
- Pega Janota, pega, lá vai o coelho!
- A licença?
O Gil apalpava-se, fingia o maior dos embaraços, punha-se de olhos em vago a consultar os botões, monologando:
- Não querem lá ver que a mulher acendeu o lume com ela! Coitada, foi para me assar as sardinhas…
Os guardas afivelavam a máscara farisaica que é própria do homem sempre que apanha o fabiano em falso.
- … a menos, a menos que não seja este papelucho… Os senhores sabem ler?...
O Gil Sapateiro é caçador de reiuna, chumbeiro e polvorinho. Pólvora e chumbo orça-os pela cova da mão. Bucha, pede-a ao musgo dos penedos ou do tronco das árvores. E o seu tiro prima por tão exacto que não o seria mais pesadas as doses em balança de joalheiro. Quantas vezes ombreando com um grupo de garbosos caçadores, dos tais de pena arvorada no chapéu de quadriláteros, a caça lhes rompo imprevistamente dos pés! Salva: bum, bum, bum! A lebre prossegue na sua rota. É a vez do Gil meter à cara… Com certa demora aponta a longa colubrina… dispara. Levanta-se uma nuvem de fumo – porque não é ele que dispõe da melindrosa e cara pólvora piroxilada – e lá está o bicho tombado sobre o flanco ou escabujando nas vascas da agonia.
Com os caçadores da aldeia Gil é o capitão. Ele é quem traça o rumo das montarias. Tal dia vai-se para os orgueirais da Nave. Os coelhos lá são densos como os pecados. Tal outro, bate-se a coutada de Águas Boas. Não deixam de saltar por lá duas maçaricas! Maçaricas são as lebres esbranquiçadas e de lombo mais amarelo que um velho chamalote.
De ordinário, ninguém é mais afortunado do que ele. Nos dias de macaca, pelas tavernas dos poviléus ou quando merendam, deitados à romana à sombra dos soutos, espoja-se na credulidade dos parceiros mais gozosamente que um galaroz no cisco das quintãs. Mormente se os pichotes cometeram o despautério de matar mais caça do que ele. Como passaram a santa manhã batendo monte, cada um se alivia do cinto, pendurando-o do galho de um pinheiro. Os cães enrolam-se em bicho de conta, mais fatigados que os amos á espera do osso ou naco de pão, partindo à unha, que caia do céu. Contemplam nostalgicamente os coelhos ajoujados pelo jarrete, com a mosca branca da cauda descaída para o lombo, as perdizes penduradas pelo bico, e vão pré-saboreando o migalho que lhes virá a competir.
Os caçadores comem, bebem, fumam, trapaceiam, lamentando-se do tiro chofrado ou celebrando a pontaria providencial neste ou naquele lance. O Gil Sapateiro, como atirador de cara e loquaz, é o tribuno por excelência.
- … Uma vez acabou-se-me o chumbo. Tinha dado num bando de perdizes, ariscas com o suão, e era vê-las tocar guizos para lá do campo de tiro. Carga a carga, quando dei conta não tinha bago no chumbeiro. O diabo foi que a certa altura vejo avançar uma lebre, aos saltinhos, tep-tep, tep-tep, furtada aos cães, de que se ouvia a maticada ao longe. Raio de azar! E agora? Era um pinhal e ponho-me por vício a escarafunchar nos bolsos, quando descubro um prego no meio do cotão. Ora, atiro com ele, um destes pregos caibrais maiores que os que crucificaram Cristo, para dentro da espingarda e, quando a lebre ia a atravessar, aponto, escondido por trás de uma giesta, disparo… Olho, lá estava a lebre, caramba! Uma lebre grande como uma casa. O mais bonito, querem vocês saber, é que ficou cravada nas orelhas contra um pinheiro. Dava salto de corça…
Os mais imaginativos ficam de boca aberta admirados e inocentes; os incréus riem.
- Assim Deus me salve, como falo verdade. Na caça, amigos, sucedeu destas maravilhas. Ainda haveis de comer muita rasa de sal para sairdes da cepa torta do laparoto trucidado no tojo e da rola assassinada no galho de um amieiro!
Façanhas e anedotas, entre caçadores, sucedem-se de cambulhada como as cerejas. É ainda ele quem conta como, num dia de Verão, voltando de Barrelas, de bicicleta, onde fora comprar pez para as linhas, uma lebre se esbarrou com ele. Atirou-lhe com a bola de pez, que se lhe colou no focinho ao que ia de mole. Vai, descia uma segunda, o macho, do outeiro do Santo Antão tão cega com o cio que veio mesmo marrar com a outra e lá ficaram as duas coladas, tão coladinhas, que foi só deitar-lhes os galfarros e pô-las á cinta.
Os cépticos respondem com vaias e gracejos. Os sisudos benzem-se. Ele jura por sua alma e de sua avó que foi assim mesmo. E acaba por ficar tão convicto da patranha forjada, que puxa para o Zé da Rocha, que se permitia duvidar.

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto: Aquilino Ribeiro
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