quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A história do Zé Vicente


Condecorado pelos seus 47 anos na pesca do bacalhau

Ainda mal rompia a luz pelas talisgas da barraca de junco desunido e já o velho fazia ranger as grossas botas de água, no terriço batido no cómodo do lado. No saquitel estavam já o naco duro do pão, a sardinha amarelada pelo ranço, e por cima de todos os hábitos e costumes, a necessidade do ganha-o-dia.
- Eh! Rapaz Eh! Zé Vicente!
O cachopinho saltava lampeiro, enfiava os calçonicos, ia buscar os aprestos da pesca e corria atrás do pai que se sumira, como tragado pelas ondas, na volta do caminho.  
Sempre assim era, desde cachopo, a vida do Zé Vicente, filho e neto de pescadores, representante de muitas gerações de velhos lobos do mar, que dêsses   tinham-os, e dos melhores e mais honrados, o lugar da Fuseta: 1500 almas à deriva das ondas.
Não que só o mar enfeitiçasse os filhos da maresia. Nada. Também a terra, loira do sol e palhetada do oiro das areias que o vento refilão ás vezes carreava, era boa mãe de quem lhe conhecesse os caprichos e lhe quisesse prestar carinhos e afagos. Lá estavam, pois, para trás dos caniços, a nesga de terra, ventre aberto à semente do griséu, ao trigo e à cevada, às belas árvores de figos lampos, às romaneiras, às nespereiras que depois de muito bem criadas, davam bons frutos para a venda em Olhão ou até mesmo em Lisboa. Era certo que não constituía comércio de tamanha valia. Mas que havia de fazer o mulherio, além de limpar monquilho aos safardanas dos cachopos, enquanto os homens se iam de abalada armar o cêrco ou se aventuravam por mais longe, para a pesca do alto?    
Que ficassem, pois, as moças e as mais velhas no amanho da terra, que quanto mais trabucassem maior provento arrecadariam para bem da sua bolsa e das terras da Fuseta. Vinha-lhe o mar beijar os pés enterradinhos na areia que por sua vez afagava a quilha dos caíques em descanso. Pela praia à sombra do costado do barco, ficava-se o mulherio de paleio a consertar as redes, a amanhar o peixe, a salgar o carapau e o sardinhame. Mas tudo isso era só quando os seus homens, maridos e filhos, que Deus trazia sempre no bercinho das ondas suspensos por um fio, pescavam costa à vista. Porque se os homens se iam para longe de abalada, então era entregarem-se, à pele curtida pelo sol e pelo ar do mar, ao amanho da terra criadora. Sêcas de carnes linguareiras, uma malícia danada a aflorar-lhes aos lábios, carreavam o pão para a sardinha, alheias ao airoso do seu corpo, a pontear a terra. Êles, então, mudos de tanto solilóquio com as ondas, vinham de longe esfomeados da fome da sua presença, deitavam-se a arranjar prole, que era sempre maior e proliferava sempre no sagrado dever de assegurar a raça dos homens rudes e fortes da Fuzeta. Às vezes, o mar era traiçoeiro como os homens no amor e apanhava-lhes filhos e maridos, antes que o credo lhes chegasse á bôca. E, então, elas, viúvas, sem braços para a terra ou para o mar, abalavam para Olhão, iam para as fábricas da conserva, para a apanha do figo, faziam o enceiramento por conta de terceiros e por lá se morriam longe do burgo que as vira nascer.
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Zé Vicente acabara nêsse ano os doze e não fôra ainda á escola que, nesse tempo as letras não davam, como hoje, pão à gente. Já desde o ano passado que se afoitara, mar dentro, a ensarilhar-se nas redes. Mas que havia êle de ficar a fazer na terra? Papo para o ar, a olhar para o tecto das canas descamisadas do milho, tecidas como as esteiras, a mal poder com as telhas, havia êle de se ficar em casa a contar as estrelas?
Não, que os remos, as velas, as redes, tudo isso se fizera para êle e para os filhos que viesse a ter. o mar tem esquisitices e não quer no seu convívio peles finas como as rosas criadas no algerós… E era lá, no mar, que grangeavam os homens o melhor do pé de meia com que iam fazendo progredir a terra, hoje até com escola e muitas casas de telhado de duas águas, postas a fôgo quantas barracas havia de junco.
Hoje, sim, todas de pedra e cal, pegando às casas suas nesgas de terra murada e um alpendre florido ou a vergar sob o pêso dos belos «dedos de dama».
Zé Vicente, esse que o diga, se bem que no trabucar não tenha grangeado coisa de jeito. Levou a vida, desde os doze, na campanha, ora na pesca de linha, de mão e «troli», no pesqueiro do alto, ora mais longe, pelos bancos da Terra Nova, à coca do bacalhau. De certo, essa foi sempre empresa mais arriscada. Mas que teme um homem, quando invoca a santa Graça de Deus? Fizera a primeira viagem aos doze anos, mas logo então magicara que também um dia, como os outros, mais homens, partiria para as terras desconhecidas, onde o mar é povoado de montanhas de gêlo. E foi assim que, aos dezassete, homem feito e pele curtida naquele corpo franzino, de nervo rijo e músculo de cabresto, partira para a viagem longa dos seus sonhos a cadeia de promessas em que prendera a Leandra Rolinha, na última vez que foram juntos à Senhora do Livramento.
À volta, tinham-se ficado pelo termo dos campos e, num ai, sem saber como aquilo acontecera, contraíram-se dívidas de gente honrada, dessas mesmas que se pagam na presença de Deus e à beira do altar. De certo, a Leandra não se temia deste adiantamento de carinhos. Ela sabia que o Zé Vicente, como todos de que havia memória e casavam adiantados, pagaria como devia as suas dívidas. Por isso na Fuzeta, não há filhos sem pais nem mães sem maridos. E, mal o demónio do sangue, aí por volta dos dezoito, se lhe alvoroça, se o moço não está em condições de ajuste de contas, não abandona a moça a confiança no eleito de sua amezedade e casa adiantada. Êles marcham depois para o mar a arranjar vida, e elas para o campo, a amealhar patacos para formar novo lar.
É um paragrafo aberto por baixo dos artigos da lei a que poucos se excusam e a que já as irmãs e os irmãos – que eram seis e dois dos quais lhe tinham ficado, com o pai, pescador do alto mar, sepultados muito longe da costa, durante a faina da pesca – não tinham podido negar-se.
Tudo isto porém, se perde já na memória do velho lobo do mar – 66 anos de vida, 47 afeitos às viagens à Terra Nova, mais 17 na pesca fácil do cêrco – à cata da corvina, do carapau e da sardinha, ali à vista da costa – e mais dois à espera de contrato para nova viagem.
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Sessenta e seis anos, mais de 54 embalado pelas ondas, muito terá que contar Zé Vicente, calado e tartamudo, sem a loquacidade do José Rolão, seu compadre, ou o José Vicente Estrêla (Rila) seu genro!
Porém, que sabe êle de aventuras? Sempre metido no porão, no ofício de salgador, o mar quási lhe é estranho à vista. Nunca a Senhora do Livramento se esqueceu do seu destino ou de lhe acender a estrêla que o há-de guiar. Quando José Vicente não tinha mais peixe para salgar – há dois anos que não embarca mas nas mãos tem os sinais, as cicatrizes das feridas profundas que o sal lhe fez na carne!
- Deitava ao mar o bote e ia para longe tentar a sorte da pesca. Porque não era com os ganhos da soldada que havia de governar-se. Se tinha bom mar e o vento menos traiçoeiro, lá ia êle: botava o isco ao peixe que saltava à sua frente e o bacalhau fincava a dentuça. Se êle se morre pelo choco, pelas cagarras e tripas de cagarras e bombaleto, era só jogar-lhe a tiro de espingarda a lambarice…
Perigos? De que se lembra o Zé Vicente, homem e consciência calma, no meio do mar revolto? Quanto aos netos – hoje um deles é pedreiro, fugiu ao mar, que o patife fazia-o côr da cidra, revolvia-lhe o estômago, e um homem quere-se estranho a estas fraquezas. – lhe perguntavam: «Atão, vomecê não tem história a contar?», Zé Vicente, cabelo rapado aonde não é chino, abre a caixa do tabaco e logo se foge às conversas:
- Pois, que quereis que vos conte? A sorte é dura, o sal faz botar sangue nas mãos, no fim, a minha vida é igual às demais. Só uma vez tive lágrimas que não eram do ardor do sal, e que foi quando o ti Jaquim Fêgo teve de ser lançado ao mar com uma pedra no peito e um madeiro atado às pernas… Era um bom companheiro e morreu com uma rouqueira no peito, por causa de ponta de ar…
- E as ilhas do gêlo? Vocemecês não nas temem?
- Lá está o vigia para gritar: «Ilha de gêlo à prôa!» O Capitão manda logo: «Arriba p’ra bombordo!» Ou, então, mais sucessivamente para estibordo!... E logo o barco se safa do caminho que o gêlo toma, a deslizar sobre as águas…
A neta do Zé Vicente, doze anos de cabelos côr de estrigas do trigo, teme-se pelo avô:
- Se vocemecê um dia ia no bote e êle se lhe virava…
-poucas são as vezes que o salgador tem para sair. Por isso vós não tendes herança a esperar do velho Zé Vicente… Os companheiros vêm de lá com os botes todos os dias a abarrotar de pescado. O capitão olha, avalia a ôlho de pêso, e põe-no na conta de quem lho leva. Depois, é passar o peixe ao partidor de cabeças, ao torteiro que o abre, ao escalador e ao garfeiro que o estripa. São assim mesas tão grandes como a porte do Sado… põem-se todos em carreira, o peixe passa de mão em mão e aquilo vai que nem que fosse máquina. Na celha lava-se o peixe e o garfeiro leva-o então para baixo, ao salgador. Assim aberto, é empilhado com sal, até fazer quintais que chegam a ser sete mil…
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E Zé Vicente, que nunca teve um naufrágio ou uma aventura, que em muitos anos de guerra só uma vez foi abordado por submarino, respeitoso das verdes e rubras côres do pavilhão, chupa o cigarro, alheio às falas dos moços. Êle pensa nos seus múltiplos problemas. Antigamente vinha de longada com o caíque a arrebentar de pescado do alto, atracava à Ribeira e era fácil negócio: por cada 30 cabazes de pescado, 3 pescados. Agora é tudo fisco, mais os grémios, mais as juntas… Depois vinha Abril ou vinha Maio, as empresas de Aveiro, da Nazaré e Afurada, do Pôrto e de Lisboa mandavam pelos homens da companha e contratavam por viagem. Cada lugre levava o muito de 36. Hoje aumentaram: 60 em cada arrastão, cada um com seu bote.
Também antigamente verdade que se dissesse, rendia menos a época. Por isso, armadores do Algarve se tinham ido abaixo: o bacalhau era uma coisa de nada, comida de pobres que os pobres mal pagavam. E Hoje? Aí estava: comida de ricos, comida que mal se comia, com os pescadores trazidos nas palminhas. Hoje, sim, que tinham baixado a juba. Porque êle bem se lembrava: ainda não tinham passado oito anos sôbre a sua prisão. Viera com todos os seus companheiros da Fuzeta, presos debaixo de forma, só porque êle e os mais se tinham recusado a ser contratados pela coisa de nada que o Grémio propusera. Assim também, não admirava que as verdades lhes entrassem pelos olhos dentro…
Zé Vicente deu um suspiro, mas atrás de umas ideias vêm outras, como bacalhaus ao isco de cagarras…
Que era isso de ganho, mesmo há oito anos, de um conto e pouco?
Hoje, botando contas…
E Zé Vicente botava contas: antigamente, aqui há trinta e cinco anos, as soldadas eram de 130 escudos e os dólares estavam a nove tostões. E era a dólares que o capitão pagava os mantimentos – carne às quintas e domingos, um doce de vez em quando – comprados em Boston e Nova York. (E aqui o Zé Vicente perguntava-se, até, porque motivo nunca descera na América e só uma vez pusera pé em rochas ermas da Terra Nova…)
Hoje, a soldada é de 2.870$00, mas o dólar está a trinta e cinco escudos… Era pouco, pois claro, mas uma coisa valia mais que a soldada e essa era a percentagem. Até cem quintais de peixe apresentado, recebiam mais vinte escudos por cada; de cem para cima vinte e cinco escudos; de 150 para cima, trinta e cinco e, de duzentos a mais, cinquenta escudos por quintal. Claro que aos duzentos quintais poucos chegavam e, com eles, ao prémio do Grémio – 300 escudos para quem apanhasse a meia tonelada. Pela média porém, bem podia dizer-se que um só homem, ao fim de uma viagem de seis meses, para além da soldada, já vinha a amealhar seus cinco contos e picos. Por isso muitos deles tinham feito casa de pedra e cal, botado redes novas, comprado mais uma geira de terra para cultivo.
E, depois, bem vistas as coisas, aquêle a quem Deus bafejara de sorte e todo o dia podia andar no bote à pesca, nunca na vida tinha tido tão poucas razões de queixa: festas de bênção no Tejo, os lugares embandeirados, ministros a acompanhá-los, eles todos num virote e nos discursos e agora, por fim, aquela grande roseta de oiro com esmaltes, suspensa de uma fita de seda, posta ao pescoço pelo Primeiro de Portugal.
Zé Vicente ergue-se impaciente. Tarda-lhe o aviso de Lisboa, a notícia de que está pronto o arrastão que o levará por todo o mês na senda dos companheiros. Irá ao mesmo tempo que o «Gilanes», sempre atento às chamadas e pronto para levar e trazer recados à família pelos fios e através do espaço…
Depois, Zé Vicente vai à arca buscar a caixa forrada de carmezim. Abre-a com jeito e fica-se a olhar as estrêlas da Ordem do Mérito Industrial com que foram premiados os seus 47 anos de viagens. Cada raio de oiro parece que é como se fosse uma das suas cicatrizes. Mas, bem confessado, Zé Vicente pode dizer como gostou de se ver falado e retratado nos jornais. Então, fecha o estojo e suspira, fazendo-se modesto:
- Isto não vale de nada. Eu vos digo, antes me dessem aumento de pensão, 30 mil reis por mês que valem hoje? E 66 anos de mar pesam nos ombros. O máximo 57… O Govêrno devia dar-nos reforma...
O Fangueiro, o Lelo, o Páscoa, o Paleiro, o Sabino, o Panela, tantos da sua idade que já partiram e são evocados nesse momento de espera!
O Filinto tinha dado a sua última palavra remordida:
- Uma destas! Só as calças e a blusa!
Zé Vicente deitara água na fervura, enquanto o Sabino, do fundo das algibeiras, retirava três pães que poupara no almoço como senhor Subsecretário, para dar à companheira que viera da Fuseta à despedida:
- Home, atão, que queres, as botas são para os cachopos da escola…
Zé Vicente sorri:
- Lá se vão 500 escudos que é quanto valem as botas de cabedal…
Depois, poisa os olhos no Oceano… Para ali ficará agarrado à medalha, a ruminar saudades, olhos fitos na padroeira que uma vez mais há-de ir solicitar para sua protectora.
E, dos olhos. Pelas rugas profundas, corre-lhe uma lágrima silenciosa e quente, de dor que não se exprime…

Fonte: Revista Ver e Crer nº2  (1945)
Texto/Autor: Manuela de Azevedo
Foto da Revista
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