domingo, 30 de dezembro de 2018

A Noite Treme


Os cães vadios chegavam em bando, vindos do escuro do pinhal, magríssimos, amarelos ou cinzentos, com feridas no lombo e de nariz junto à terra, a murmurarem. Aproximávamo-nos e fugiam com medo. Comiam pássaros mortos, carcaças de coelho, detritos. Às vezes, ao crepúsculo, sentia-os à volta da casa, procurando os sobejos do lixo no caixote: restos de frango, ossos, farrapos de embalagens de margarina, caroços de fruta. De tempos a tempos soluçavam, não ladravam nunca. Um deles, de pata mirrada no ar, caminhava com as outras três e as velhas, sentadas de lado nos burros, ameaçavam-nos com a bengala. Ou então dava com os cães de roda da capoeira a mirarem as galinhas. A cozinheira achava que eram almas penadas de gatunos. Os miúdos matavam-nos à pedrada, sob os castanheiros, e os animais ficavam para ali, cheios de moscas, a enterrarem-se sozinhos: quando não se enterra uma coisa viva a coisa sepulta-se sem ajuda, a pouco e pouco. As formigas auxiliam. E umas lagartas esquisitas, esbranquiçadas: tantos mistérios no mundo. Os arco-íris, por exemplo, ou os milhafres da montanha, quietos lá em cima, a escolherem o vento. Tornei a dar por eles em África. Pelo menos parecam.me  eles, só que maiores e mais imóveis ainda. A única coisa que me surpreendia era a cozinheira não estar lá, a repetir
- Os milhafres
Pasmada. Um dia adoeceu do peito e levaram-na. Desceu as escadas amparada a dois bombeiros. Lembro-me das pantufas e de segredar, pela dificuldade de boca
- Não tornaremos a encontrar-nos menino.
E não tornámos a encontrar-nos, realmente: o hospital de Viseu tão longe. Tudo tão longe nesse tempo, as caras dos adultos quase junto ao tecto, as cadeiras enormes e o mundo a encolher com os anos. Quando fica pequeno adoecemos nós: já vão sendo horas de arranjar umas pantufas.
Aqui, onde estou, a noite treme: não são as árvores, não são as sombras, não é a roupa, pendurada nos fios, que mal se distingue: quem treme é a noite.
Move-se devagarinho na direcção de quê’ uma ambulância a chorar na avenida, coroada de lâmpadas azuis e encarnadas: deve ser a cozinheira a atravessar Lisboa. Lucília. A mala dela debaixo da cama, quase vazia, uma santinha fosforescente no vão da janela, brincos de pobre numa latita. Cheirava a lenha e a azedo, começava a ter rugas em torno da boca: se durasse uns meses mais tornava-se uma velha sentada de lado no burro a ameaçar os cães vadios com a bengala. Ao almoço tiravam uma batata crua do xaile e principiavam a roer-lhe a casca numa lentidão avarenta, enquanto os maridos, de boné, arrastavam a bota esquerda no largo. Reparando bem como a noite treme. Ou será a minha mão no papel? Avança e recua na cadência do sangue e eu a dilatar-me e a encolher-me com ela. Vontade de lhe chamar diminutivos: noitinha. Tão bonitos os diminutivos na nossa língua. Noitinha. Não tornamos a encontrar-nos, menino. E os brincos de pobre que não saem da ideia, a ferrugem na latita. Em cada ambulância é ela a circular na cidade, sem repouso. Não há hora que não a oiça, à roda, à roda. Se me aproximasse da ambulância fugiria com medo, como os cães? Ou levava-me à despensa
- Apetece-lhe um quadradinho de marmelada?
e ficava a ver-me comer, muito séria. Que queres de mim, noitinha, que não paras de chamar-me? Oiço o meu nome. Oiço o pêlo do tapete crescer, devo sentir-me sozinho, sinto-me sozinho, noitinha, confesso que me sinto sozinho:  não há por acaso um burro aí para eu me sentar de lado com a minha batata no xaile? Roê-la mesmo crua, mesmo com casca? Cheirar a azedo e a lenha? Os milhafres em Portugal, os milhafres em África. As cadeiras enormes, tudo enorme. Apagar as luzes e ficar na casa vazia, de olhos abertos, à espera que qualquer coisa venha e me leve, não importa para que sítio desde que seja longe, onde ninguém me chama. De qualquer maneira, mesmo que permaneça á secretária, ninguém há-de chamar-me.

Fonte: Revista Visão
Texto/ Autor: António Lobo Antunes
Foto: Susana Monteiro/re-searcher.com
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O esconderijo das galinhas


Todas as madrugadas a minha mãe levava-me para casa dos meus avós. Ainda o sol não tinha aparecido, era escuro e fresquinho. Eu ficava lá  até à hora de ir para a escola e os meus pais irem trabalhar. Ali passei toda a minha infância e adorava lá ficar.
A casa não era muito espaçosa, mas o quintal era o meu paraíso. O meu avô cuidava muito bem dele. Havia árvores de frutos, pereiras carregadas. As peras pareciam enferrujadas mas eram bem doces quando estavam maduras. As parreiras eram três, uma de uva preta bem pequenina, que o meu avô usava muito para fazer vinho. As outras eram rosa e branca. Além de toda a fruta havia uma plantação que a avó cuidava, com chás e ervas que os vizinhos vinham sempre procurar.
No fundo deste quintal havia um galinheiro com vários tipos de galinhas, brancas, vermelhas e umas diferentes que não sei bem se eram galinhas-de-angola. Só sei que faziam um barulho engraçado!
Um dia resolvi que iria procurar uma forquilha para a minha fisga. Nós brincávamos ao tiro ao alvo com elas e fazíamos campeonatos para ver quem atirava mais longe a pedra. Nunca a usei para fazer maldades.
Subi  à árvore mais alta e fiquei lá à procura. De repente encontrei, num canto do quintal bem ao fundo… Uma mancha branca? Um monte de pedras? Ora, o que seria?
Fiquei curioso e resolvi descer. Fui directo ao lugar, e que surpresa! Era um monte de ovos de galinha.
Corri para dentro de casa e chamei a minha avó, que não pareceu surpreendida. Levou uma cestinha de palha e pegou nos dez ovos que ali estavam. Então explicou-me que as galinhas costumam ter esconderijos no quintal.
-Vê, são ovos diferentes uns dos outros.
E realmente eram. Mais tarde chamou-me: tinha feito um bolo de iogurte delicioso usando alguns ovos do esconderijo.
Mais uma coisa para eu espiar: agora seria os esconderijos das galinhas.
Acabei de fazer a minha fisga e mostrei-a ao meu avô que estava a fazer um banquinho para mim.
- Cuidado, menino, isso é uma arma, vê lá o que vais fazer com ela!
- Pode ficar descansado avô. Não se esqueça do meu carrinho de rolamentos.
Fizemos o campeonato e eu perdi – pudera, a minha fisga estava com defeito.
Pois claro, só pensava em encontrar os esconderijos das galinhas!

Fonte: Revista Terra do Nunca
Texto/Autor:
Foto da revista
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

De Tarde


Naquele piquenique de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo o burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, ainda o sol se via:
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Fonte: Almanaque Diário de Notícias
Texto/Autor: Cesário Verde

Foto da Net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A missão do Anjo Serafim


Entre os anjos do céu havia um que se chamava Serafim e que era um anjo importante, mas era também um bocado traquinas. Vivia a fazer brincadeiras com os amiguinhos. Puxava as trancinhas das anjinhas, prendia as asas dos outros anjos com molas da roupa, fazia «buuuuuuuuuu» para assustar São Pedro, na portaria do céu, e colocava nuvens na Lua para apagar o brilho. Mas, mesmo sendo tão rebelde, era muito querido pelo anjo Guardião, responsável pela ala onde viviam os anjos.
Um dia Deus chamou o Guardião à sua sala. Os megafones do Céu retumbaram:
- Atenção, senhor Guardião dos anjos, compareça à sala do Altíssimo!
Esse chamado foi repetido várias vezes. O Guardião tomou conhecimento. Arrumou a sua vestimenta, aprumou as asas, ajeitou a auréola de luz da sua cabeça, iluminou o rosto com um sorriso e lá foi para a sala do Pai.
Chegou e bateu timidamente. A voz grave veio lá de dentro:
- Entra, meu filho!
O Guardião entrou e viu na face do Pai toda a bondade, toda a placidez que existe no universo.
Então ele disse:
- Pai, estou à espera das suas ordens!
Deus chamou-o para perto de si e, sorridente, cochichou ao seu ouvido. Depois disse, convicto:
- Que se cumpra!
Enquanto isso, na sala dos anjos havia um forte burburinho. O que seria que Deus queria conversar com o anjo Guardião? Neste momento entra o Guardião, muito sério.
- Crianças, o Senhor destinou uma tarefa para um de vocês. Não era fácil, porque a tarefa não será no Céu, será na Terra.
Ouviu-se, em uníssono, o «oh» dos anjos. Realmente será uma missão quase impossível. Humanos não são fáceis. E o anjo? Qual deles estava designado para essa tarefa? Mais uma vez, ouviu-se a voz do Guardião:
- O anjo escolhido por Deus é o anjo Serafim…
Nesse momento todos exclamaram: «Chiiiiiiiiiiiii!» Eles não acreditavam muito no pobre do Serafim. O Guardião continuou a falar:
- O anjo escolhido tem a missão de salvar as baleias dos mares da Terra e tem sete dias para fazer o trabalho.
Um anjo curioso perguntou:
- Porque é que Deus quer que sejam salvas as baleias?
- Porque elas fazem parte do equilíbrio do ecossistema do planeta. Cada animal, cada planta, cada macro e microrganismo, são um elo da corrente. Quebrado um elo, todo o sistema desaba. O ecossistema da Terra já está quase falido porque o homem não sabe cuidar da casa que Deus lhe deu.
E Serafim desceu á Terra para cumprir a sua missão. Assustou-se com o movimento de carros, tossiu com o ar poluído, viu a devastação das matas, a erosão do chão, tremeu diante da poluição das águas e até chorou quando viu a enormidade de lixo a boiar nos rios e nos mares. Já estava no terceiro dia. Partiu para o oceano para conhecer as baleias.



Ficou com o coração partido ao ver aqueles barcos com homens arpoando os enormes animais. Ficou pairando no ar a imaginar como ele, tão pequenino, poderia salvar aquele imenso animal, caçado por outro mais pequeno. Já estava no sexto dia e ele ainda não sabia como fazer para salvar as baleias. Voltou para terra. Fico invisível no cais, vendo e ouvindo as pessoas. Foi neste momento que chegou um grupo indignado com aquela matança.
- Veja – dizia uma mulher -, a baleia-azul, a orca e o cachalote já são tão poucos nos oceanos.
E ficaram a contar as baleias mortas que eram descarregadas no cais.
Então Serafim teve uma ideia. Aproximou-se do grupo e soprou, ao ouvido de uma das pessoas, a ideia:
- Pessoal, já sei como vamos acabar com isto!
- Como? – perguntou um homem alto e forte.
- Vamos partir para o mar em barcos, botes, seja lá o que for, com megafones no volume máximo, ficaremos á frente do baleeiro e só sairemos quando eles desistirem. Se algum de nós morrer, será por uma causa justa.
E assim foi feito. Embora não tenham acabado, totalmente, com a mortandade das baleias, ela diminuiu um pouco. Foi muito trabalho. Muita luta com os países que defendem a caça sem limites das baleias.
Isto aconteceu no sétimo dia da missão de Serafim. Feliz, ele voltou para o Céu. Todo o colectivo de anjos estava em festa. Tinha sido cumprida a ordem de Deus. O anjo Guardião entregou a medalha de «honra e mérito» a Serafim, sob os aplausos de todos. Depois da recepção, o Guardião pegou Serafim pela mão e subiu com ele para a esfera mais alta do Céu, onde habita Deus, porque a partir daquele instante, Serafim tornou-se um dos anjos que estão á direita de Deus.



Fonte: Revista Terra do Nunca

Fotos: Carla Antunes
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Um Serão a dois


Diz-se que, quando a paixão se vai, fica o amor ou o companheirismo. Anabela e Luís estavam casados há quatro anos e há muito que tinham apagado o fogo dos afectos. O que restava agora, para além das séries de televisão?
- Oh mulher, quando é que te decides a vir para a cama?
Luís estava na casa de banho, a lavar os dentes, e mostrava uma certa impaciência.
- Já vou; estou a ver a série dos médicos com o George Clooney – respondeu Anabela da sala, emocionada com o que se passava no ecrã.
- Claro tinha de ser o Clooney – explodiu ele.
- Ora, e tu gostavas de ver as Marés Vivas por causa das beldades que lá apareciam – retorquiu ela, pensando que, com tal argumento, arrumava o caso. Estava enganada.
- Não é verdade. Não era por causa das mulheres. Sempre gostei de ver aquele actor, o que tinha o carro todo artilhado e que falava.
- Pois é. Eu também vejo o Serviço de Urgência, porque gosto de ver feridos deitados em macas.
- Anda mas é deitar-te mulher – insistiu ele.
Como não obtivesse reacção, Luís foi á sala.
- Então? – Perguntou ele encostado à porta.
- Então o quê?
- Apaga o televisor.
- Chiuuu. Espera …
Anabela não estava ali. Embevecida com o desenrolar da história, tinha perdido por completo o contacto com a Terra. Nessa altura, o protagonista, de bata branca meio desabotoada, beneficiando de um ângulo de luz no rosto bem barbeado, simulava uma massagem cardíaca a um septuagenário encontrado, inanimado, minutos antes.
- Se não é o Clooney é o Rod Stewart e as suas cantiguinhas marialvas. Deve ter sido por isso que oxigenaste o cabelo. Como sabes que o gajo gosta de loiras. Pintaste o cabelo na esperança de que te leve a passear de Ferrari.
- Parvo, cala-te.
Anabela não desgrudava do ecrã e luís desesperava.
- Ainda bem que não te embeiçaste pelo De Niro, que tem queda pelas escuras. Então aí devias mascarrar-te toda com carvão ou graxa.
- Isso tudo é ciúme – disparou Anabela.
- Ciumes? Deves ser parva. Não consigo é perceber toda essa baboseira com Clooneys, Rods e outros marmanjões.
- E tu com as Pamelas Andersons? Com as Fernandas Serranos?
- Quero lá saber delas…
- Ah é? E as revistas pornográficas que tinhas no carro? Hum?
-Isso foi o Lopes que se esqueceu delas no dia em que lhe dei boleia para casa.
- Santinho.
- Não espirrei.
- Que graça.
- Não tem graça nenhuma.
E o gajo da mercearia?
- O que é que tem o gajo da mercearia?
- Diz-me tu. Rara é a vez que não tens de la voltar porque te esqueces-te do esparguete ou da margarina.
- Não mereces resposta.
Agora cala-te, que vai começar a série.
Luís ficou a remoer ameaças. Anabela concentrou-se.
- Gostava de saber para que casaste comigo. Se fosse o Clooney que aqui estivesse, já estavas na cama, toda cheirosa e de língua de fora.
- Vai mas é babar-te para cima das fotos da Pamela…
Nem completou a frase. Uma falha de electricidade lançou a casa na escuridão.
- Bolas – berrou ela.
- Ainda há justiça – proferiu Luís, enquanto puxava os cobertores até ao pescoço.
Anabela tacteou as paredes do corredor, dirigindo-se para o quarto.
- E agora? – Perguntou ela.
- Agora o quê? Vai acender uma vela e lava os dentes.
- Tu devias ir para a tropa.
Pareces um sargento. E que conversa foi aquela do merceeiro? Estás a passar-te?
- Tu é que me fazes passar da cabeça com as tuas manias dos actores e dos cantores.
- És tu que me dizes isso, que não podes ver uma “burra de saias”.
- Oh Anabela, e se nos deixássemos de discussões e aproveitássemos este escurinho bom?
Luís tirou o braço debaixo dos cobertores e tentou tocar Anabela.
- Está quietinho, que não estou com disposição para brincadeiras.
- Ah é? Dói-te a cabeça, por acaso? É o costume, aliás.
- Que engraçado. E tu, quando te queixas de que estas cansado? Que tens tido muito stress no emprego?
Luís ia responder, mas Anabela já retrocedera, saindo do quarto em busca de uma vela. Foi nesse momento que a luz veio. Ambos ficaram satisfeitos. Ele foi-se pôr atrás de Anabela, entretanto ocupada a lavar os dentes.
- Anda cá meu anjinho cheiroso – disse ele.
- Que queres? – Perguntou ela, adoçando o olhar.
- Ainda é cedo. Podíamos fazer qualquer coisa.
- O quê?
- Não sei. Podíamos ir até à praia e fazer amor no carro, junto às arribas.
- Não, está frio e ainda tínhamos de fazer uns 20 ou mais quilómetros. Só se for uma saída para irmos dançar.
- Dançar? Dói-me um pé. E detesto pagar uma fortuna por um dedo de uísque e quilos de gelo.
Ficaram os dois pensativos por um bocado. Depois, em simultâneo, disseram:
- Amo-te.
Riram e beijaram-se. No minuto seguinte, estavam pregados frente ao televisor, abraçados. Assim ficaram o resto do serão, a ver um filme como Van Damme.

FIM
Fonte: Revista Maria
Texto/ Autor : V.F.F
Foto da revista
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Noite de chuva


Chuva… Que gotas grossas!... Vem ouvir:
Uma… duas… mais outra que desceu…
É Viviana, é Melusina, a rir,
São rosas brancas dum rosal do céu…

Os lilases deixaram-se dormir…
Nem um frémito… a Terra emudeceu…
Amor! Vem ver estrelas a cair:
Uma… duas… mais outra que desceu…

Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito…

Ah! Deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim… o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Florbela Espanca
Foto da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

terça-feira, 26 de junho de 2018

O Chiquinho


Num quarto andar da Rua de Latino Coelho vive alegre e satisfeito, na sua gaiola, o «Chiquinho», lindo e manso periquito. Tem o peito de cor azul, asas cinzentas mescladas de branco, penas alvas e aveludadas na cabeça, e, por baixo do bico, ostenta seis pintas também azuis, sem esquecer a cauda, que possui tons de safira mordida por feixes de luz.
O «Chiquinho» não é um periquito vulgar: adorando a gaiola, onde saltita, brinca e fala, atreve-se a vir até ao ombro dos donos; aprecia o miolo de pão embebido em café com leite, à hora do pequeno almoço; delicia-se com a frescura das alfaces e o sabor agradável dos pêssegos; e, empoleirado nas mãos das pessoas amigas, os seus olhos minúsculos e pretos, muito luminosos e inocentes, enchem-se de ternura. Não tem medo de espécie alguma: supõe que toda a gente, que o afaga e acarinha, aprendeu os ensinamentos da alma de S. Francisco de Assis. Só há uma coisa que o amedronta – o frio do inverno, e, por isso, a sua gaiola, em tal quadra do ano, está protegida com tiras de lã. Aos domingos, quando a família se reúne para almoçar, o «Chiquinho» sacode as penas, pedindo assim que lhe abram a porta da gaiola. É vê-lo então: contentíssimo, considera a mesa propriedade sua, onde Deus espalha a fartura, para que ele possa debicar côdeas de pão, bagos de arroz e tudo o que mais lhe oferecerem. Mete-se nos copos ainda humedecidos pelo vinho, e, com a língua grossa e escura, lambe o vidro em busca de gotas do precioso líquido, que o fascina e encanta. Se lhe fosse permitido, «Chiquinho» gostaria de se embriagar em completa liberdade.
Se o mercúrio do termómetro baixa, logo ele prefere a gaiola às brincadeiras que se lhe proporcionam; se sai do poleiro, ultrapassando a portinhola aberta, procura, junto dos lábios dos donos, o bafo morno, que o aquece e reanima.
«Chiquinho» fala extraordinariamente bem, como simples periquito que é. Se há sol e barulho em dicção claríssima diz numa conversa quase seguida: «Meu menino», «Chiquinho pequenino», «Estás bonzinho?», «Da cá um beijinho», «Como está, seu Chiquinho?», «Vá dormir!». Quando o fazem zangar, exclama: «Ai, ai, ai!». Se quer chamar alguém, ouve-se-lhe um nítido e engraçado «Psiu!».
Calcula com maravilhosa exactidão a hora em que o dono volta do emprego, e, minutos antes, trila duas vezes e sacode as penas com frenesi. Quando este chega, saltita na gaiola como a querer saudá-lo em ímpetos de grata amizade.
Parece extasiar-se com a música, sempre por ele escutada atentamente através da telefonia e, dotado de óptima memória, procura imitar os sons que mais lhe agradam. Todo se alegra diante de um espelho, e, nesses instantes de felicidade, tagarela e tagarela, que é mesmo regalo dos olhos e do espírito observá-lo em plena loquenda.
«Chiquinho», periquito lindo e meigo, tem direito a possuir uma «biografia», e eis-nos a exalçar o seu modesto viver, por entre os carinhos duma família que o admira e adora.

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Desconhecido
Foto da revista
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sexta-feira, 25 de maio de 2018

A última boneca


A meio da doença cruciante,
No vivo empenho de a animar ainda,
Comprei-lhe uma boneca muito linda,
Que ela teve nas mãos um só instante.

Mas teve-a em suas mãos, e isso é bastante
Para que eu, muita vez, com mágoa infinda,
Beije a boneca, apetecendo a vinda
Da morte maternal, pacificante.

Pobre boneca! Ao ver meu desatino,
Mostrar pareces tal desconfiança
Que eu nem me atrevo a defrontar-me ao espelho.

E tens razão: erraste o teu destino!
Em vez de fazer rir uma criança,
Fazes chorar agora um pobre velho!

Fonte: Almanaque Bertrand
Texto/Autor: Eugénio de Castro
Foto da net
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terça-feira, 24 de abril de 2018

A Gota de Chuva


Era uma vez uma gota de chuva. Apareceu com os primeiros raios de sol e era tão redonda, brilhante e transparente que parecia uma pedra preciosa esquecida por uma fada numa pétala de rosa.
Enquanto as outras gotas falavam e se divertiam a deslizar pelas folhas de outras plantas do jardim, a gota redonda nem se mexia. Não queria estragar a sua forma e temia que o mais pequeno movimento a dividisse em muitas gotinhas sem o mesmo brilho.
Um beija-flor, que saiu do seu esconderijo com a claridade que veio depois da chuva, aproximou-se da rosa para provar o seu néctar. Mas a gota redonda pediu-lhe para ir tomar o pequeno-almoço noutro lado.
O movimento rápido que o pássaro tinha de fazer com as asas para se equilibrar no ar podia fazê-la rebolar pela pétala abaixo e cair no chão.
O beija-flor reconheceu que era muito bonita e, como nunca lhe tinha feito um pedido semelhante, acedeu ao desejo da gota. Ainda que lamentasse perder um sumo tão delicioso, virou-se, deu uma vista de olhos pelos canteiros e voou rapidamente em direcção às camélias.
Pouco tempo depois um mosquito aterrou numa folha da roseira. Tinha a garganta seca por ter feito uma longa viagem desde o pinheiro onde dormia, e pensou que aquela água era do tamanho ideal para acabar com a sua sede.
A gota redonda pediu-lhe para ir beber à poça de água formada na terra, ao pé das raízes da buganvília, pois tinha visto outros insectos voarem nessa direcção e o lugar devia ser mais do seu agrado. O mosquito que gostava de beber em boa companhia, concordou e fez um voo picado até ao charco, onde encontrou alguns amigos que já lá estavam desde a madrugada.
A gota suspirou aliviada e descansou alguns minutos de todos estes contratempos.
O sossego durou pouco porque de repente viu avançar na sua direcção uma aranha com idade para ter teia própria. Vinha devagar tecendo a linha da sua rede com cuidado, tentando não se enganar nas voltas para não ficar presa na sua própria armadilha. Faltava-lhe pouco para acabar a sua primeira obra e, quando olhou em frente, viu que a folha no alto da roseira era o lugar ideal para lançar o fio mais comprido.
A gota tentou afastar o perigo explicando os seus porquês. A aranha, que era muito resmungona, ficou zangada por ter de refazer uma parte do trabalho por causa de uma gota maçadora e, depois de  uma troca de palavras desagradáveis, continuou a tecer a rede com a baba que saia da sua boca para esse efeito.
Mas a gota teimosa encontrou tantos argumentos para a dissuadir, que a aranha farta de ouvir um nunca-acabar de palavras que lhe cortavam a inspiração, decidiu mudar de rumo e poisar a última ponta da teia na glicínia.
Enquanto continuava redonda e brilhante, sem se mexer, pensava como era difícil a vida naquele jardim. Tinha de lutar pela sua sobrevivência com toda a imaginação e usar o poder da palavra para se defender dos mais fortes.
Das gotas brincalhonas não ficavam nem rastos, teve os seus momentos de inveja ao ouvi-las rir e cantar, mas agora não se arrependia de todos os seus cuidados. Afinal, ainda lá estava no mesmo lugar em que tinha caído do céu. Um caracol dorminhoco que não gostava de madrugar acordou com o piar de uns pardais que disputavam os bagos de arroz espalhados na noite anterior à volta da gamela do cão. Pôs as antenas de fora, esticou o pescoço, olhou em redor e decidiu dar um passeio. Nada melhor para começar bem o dia do que escalar uma planta. A roseira onde tinha passado a noite parecia-lhe mais indicada. O seu talo era largo, liso e tinha poucos espinhos.
Começou a subir lentamente deixando ao passar um largo rasto de baba brilhante. Foi esse brilho que alertou a gota de água da chegada do caracol. Por enquanto estava no principio da subida e não corria perigo, mas perto dela o talo era mais fino e, á medida que se aproximasse o peso do caracol faria tremer as flores e provocaria a sua queda.
Gritou com todas as forças da sua voz de água mas o caracol não a ouviu. Prosseguia o seu passeio matinal parando em cada ramo para apreciar a vista, pouco interessado no que se passava lá em cima. Tanto se esforçou a gota para chamar a atenção do caracol que quase perdeu o equilíbrio e, se não tivesse tanto medo de ficar reduzida a uma mini gota, teria começado a chorar.
Tão ocupada estava em não desviar o olhar do trajecto do novo invasor, ela que tinha corrido tantos perigos pequeninos, que não teve tempo de pensar no maior de todos: o sol.
Pouco a pouco, enquanto a gota estava distraída, o sol fez-se mais quente e foi evaporando a sua água, e quando deu por si já estava outra vez sentada numa nuvem rodeada de milhões de gotas vaporosas, prontas a deixarem-se cair quando lhes chegasse a ordem de chover.


FIM

Fonte: Revista Terra do Nunca
Texto/Autor: Cristina Norton – Do Livro “O barco de chocolate”.
Foto da revista
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sexta-feira, 23 de março de 2018

Amor


O Amor! O amor! Ninguém o definiu
É sempre o mesmo. Acaba onde começa.
Quem mais o sente menos o confessa.
E quem melhor o diz nunca o sentiu.

Conhece a todos mas ninguém o viu.
Se o procuramos foge-nos depressa.
Se o desprezamos, tudo se interessa.
Só está presente quando já fugiu.

E quanto mais se quer, menos se alcança.
É homem feito sendo uma criança.
Ninguém o encontra e em toda a parte mora.

Mata a quem dele vive. É sempre assim.
Só principia quando chega ao fim.
Morreu há muito e nasce em cada hora.

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Virgínia Vitorino (Do livro «Namorados»)
Foto do texto.
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A Árvore Sagrada


A velha estava no meio do terreiro, de pé, muito direita, com as mãos na cabeça. À sua volta, o povo apinhava-se, em silêncio. Todos esperavam numa grande impaciência, que ela falasse. Só da sua boca se poderia saber a verdade amarga, para que se fizesse luz sobre a noite que tombara como uma maldição na senzala e na vida do seu povo miserando, porque fôra ela a única pessoa que presenciara a cena. Mas a velha não pode falar. A comoção embarga-lhe a voz. E está possuída de medo e de pavor.
Os homens abeiram-se mais, e têm os olhos obstinadamente fixos no seu rosto transfigurado, brilhante de suor, os olhos arregalados a ganharem brilho de cristal, a boca torcida a espumar pelos cantos. Quere falar, gritar a toda a gente o seu pavor, mas sente a garganta a apertar-se-lhe e a boca cada vez mais seca e amarga. Levou as mãos, sacudidas de tremuras, à garganta, mas logo as desceu ao peito, a querer acalmar as pancadas desordenadas do coração.
E eles, com os olhares fechados nos seus olhos atónitos, nada lhe perguntaram. Não podiam falar. Também têm medo de abrir a boca. E se o fizessem, decerto nada lhe perguntariam, porque neles só há gritos abafados pelo pavor.
Mas ninguém pode suportar por mais tempo a angústia do silêncio que ensombrou o povo.
A velha fez um esforço enorme e, por fim tartamudeou:
- Caíu… eu vi… não sei… vi… - olhava, com uma expressão de louca, para todos os lados, sem saber onde punha os olhos, sem ver nada.
- Caíu…
Um velhote afastou, com modos bruscos, os homens que estavam à sua frente, chegou-se à velha e pôs-lhe uma mão no ombro. Ao contacto daquela mão, que mal a tocou, a mulher deu um salto para trás e sacudiu-se num grito que ecoou nos longes da estepe onde se acachapa a aldeola. E a multidão recuou. Só o velhote sem se mexer.
Volvidos uns segundos, ele perguntou-lhe com uma voz aparentemente calma:
- Quem é que estava com ele?
Ela abriu muito os olhos, vidrou-os com lágrimas e pôs-se a tremer como uma criancinha medrosa; e foi muito a custo que balbuciou:
- Ali… ali… - E os seus braços estenderam-se para a frente, e ficou-se com as mãos abertas a tatear o espaço. Depois a boca encheu-se-lhe de espuma e não pôde dizer mais nada.
O silêncio que caiu carregou-se de mistério. De longe, lá do fundo da senzala, veio chegando uma toada de choro, que ficou a pairar sobre o povo. Os homens, com os olhos no chão, foram-se afastando para o lado oposto de onde vinha o choro das carpideiras e das mulheres do soba.
Então, a velha acordou do seu espanto para romper num choro sonoro e convulsivo. O homem que lhe falara abeirou-se, tomou-a por um braço e disse-lhe, em voz baixa:
- Vamos, Nhacange.
Deixou-se levar, sem uma palavra. O velhote conduziu-a para a porta da sua cabana, onde a sentou sobre uma esteira. Entrou no colmado, para logo regressar com uma mutopa. Carregado o cachimbo-de-Água com tabaco misturado com cânhamo, acendeu-o e, depois de encher a boca desdentada com várias fumaças, passou-o á velha. Ela fumou em silêncio; e lentamente seu rosto serenou, apagou-se-lhe o brilho cristalino dos olhos e os movimentos tornaram-se vagarosos.
Inclinado sobre o seu ombro, o velho perguntou-lhe:
- Como foi?
Nhacange pôs o cachimbo no chão, deixou cair as mãos no regaço, e, depois de suspirar fundo, disse numa voz lenta:
- Ele saiu de casa muito zangado com as suas mulheres; e ficou a insultar toda a gente.
- Estava bêbedo?
- Não, Xapinda, não estava. Estava só zangado. Quando me viu, gritou assim: «Oh velha, tu já viste uma mulher gritar com o seu homem?! É preciso matar essa velha muári».
- E depois? – Perguntou o velhote, a tremer de inquietação, com os olhos a chisparem.
- Depois, veio a andar para mim, mas quando chegou ali – e ela apontou para a chota – ficou com a cabeça deitada para trás e caiu todo direito, como um pau. Ficou no chão sem se mexer. Nem gritou!
Calaram-se. O choro continuava a vir das cubatas do soba e de suas mulheres, como uma ladainha.
- Foi o sol que o matou… - disse Nhacange, baixando os olhos.
O velho meneou a cabeça e apertou violentamente os lábios. Perguntou com voz dura:
- E depois?
- Eu estava a gritar quando as mulheres dele o levaram.
- E a muata-muári?
- Não vi, Xapinda; não vi. Não saiu da sua casa.
Após um grande silêncio, a velha disse, pausadamente, os olhos a carregarem-se de lágrimas:
- Ele era um homem bom. Não havia outro como ele. Não era?
O homem disse muitas vezes que sim, com rápidos movimentos de cabeça.
-Ele vai ficar com a sua gente – sentenciou Xapinda, depois de longo silêncio.
Nhacange olhou-o abrindo muito os olhos; depois, sorriu de modo compreensivo e disse:
- Sim. Ele era bom.
Xapinda deixou-a. E quando chegou a meio do terreiro, chamou o Camuári, que estava entre a multidão.
O velho e o moço deixaram a aldeia.

///

O soba está morto.
O luar branqueou a terra, e o vento leve que vem do descampado, mal balanceando os cimos do capinzal, arrasta pela estepe longínqua o som dos tambores que choram a morte do chefe que governou com justiça, e que por isso mesmo, passou a viver na saudade do seu povo.
Choram os tambores nas bocas dos caminhos das senzalas, convidando à dor os homens que, nas aldeolas perdidas na estepe, os escutam. As mulheres gritam á volta do cadáver o seu desespero e amargura. E além, dentro da noite de uma mata, em redor dos clarões de uma fogueira, rezam os feiticeiros.
E todos sentem que o soba está mais perto deles. A dor do povo engrandeceu o homem que a morte sentou. A sua memória já se quedou na história do povo. Amanhã, depois de dançado o batuque fúnebre, os cantadores irão, de aldeia em aldeia, sertões em fora, cantar a canção da sua vida e da sua morte. Mas quando os homens que o viram e amaram, porque foi justo para a sua gente e cruel para o inimigo, já não existirem, a sua história, adulterada pela imaginação das velhas contadoras de rimances e dos cantadores, volver-se-á em lenda. E se um dia o fogo rolar pela senzala e fizer das árvores cinzas, tornando aquele chão terra abandonada, onde ninguém porá o sentido, ainda serão os velhos que o conheceram, quem guardará, para transmitir à sua gente e aos moços viandantes que pernoitem na sua nova terra e aldeia, a lenda desse soba que teve senzala na estepe lunda, em recuados tempos, e que morreu de feitiço… e eles não deixarão, de regresso ao seu povo, de cantar, ao som dolente e nostálgico dos quissanjes, a lenda feita canção.

///

Calaram-se as vozes dos tambores.
O sol espelha a sombra das árvores no terreiro, onde o povo, em magote, segue, com os olhos maguados de medo, a cerimónia a que estão entregues os feiticeiros, acocorados à volta de uma árvore de culto. Falam monotonamente, numa linguagem que só eles compreendem – eles e os espíritos a quem se dirigem. E quando se calaram, ficaram a olhar, com uma fixidez que os absorveu por completo, para a árvore mantendo uma postura de encantadores de serpentes. Ao seu lado, brilham as lâminas das facas, depostas sobre a mascara dura, talhada num madeiro enterrado junto á árvore de culto, do deus Camuári, o deus da morte. E só quando das bandas da moradia do soba se levantou um chamado, é que eles se moveram, lentamente, mas logo voltaram à mesma posição. Minutos depois, vários homens, gente grada, trouxeram, sobre uma padiola, o cadáver do soba, envolvido em folhas. Quando eles chegaram ao pé dos feiticeiros, depuseram o corpo do soba à sombra da árvore de culto, sob a protecção do deus Camuári. E fez-se silêncio.
Nhacange, enrodilhada a um canto da sua cubata, está a chorar as últimas lágrimas. Logo, ela irá cantar, na roda do batuque, a canção da vida e da morte do seu soba:
Na casa onde o chefe do povo habitou durante largos anos, as suas viúvas já não têm mais lágrimas. Estão caídas pelos cantos, a gemerem a sua dor.
E além, à beira do caminho público, o velho Xapinda, ajudado por alguns moços, acaba de erguer a cubata que receberá o corpo do soba, depois dos feiticeiros lhe roubarem a alma.
Xapinda está a ouvir o som das facas a vibrarem golpes na árvore, enquanto os feiticeiros, com exortações e rezas, procedem à transladação do espírito do soba, apelando para a protecção dos deuses e dos espíritos bons dos sobas, cuja vida ficou para sempre na memória do seu povo. Depostas, de novo, as facas aos pés de camuári, os feiticeiros prestaram culto, acompanhados por todo o povo, á árvore sagrada onde passou a viver o espírito do soba.
E amanhã, e sempre, os lundas dessas bandas dirigir-se-ão aos manes dos seus antepassados, por intermédio do espírito do soba, cativo dessa árvore de culto por amor do seu povo.

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Castro Soromenho (Do livro «Rajada e outras histórias»)
Foto do texto
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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

1940

Passam os anos!
Lá vão, em cavalgada,
a perder-se na bruma do passado…

É a vida a renovar-se, sem cessar,
em dôr, em esperança,
em abismos de crime
e redentoras claridades.
Um ano, outro ano, e sempre, e sempre…

É a vida a reviver em cada hora
em amor, em lutas e saudades.

O tempo que lá vai!
Datas heróicas
foram assinalando, em luz, no nosso céu,
padrões de glória, imorredoira e bela!

Portugal nasceu
Numa hora bendita de heroísmo e graça.

E sempre, até agora,
brilhou bem viva e alta a sua estrêla,
a marcar um roteiro de beleza
nos destinos da raça!

E o tempo sem parar…
Passaram tempestades,
perigos e grandeza,
feitos prodigiosos
e ameaças de morte…
Mas nunca sucumbiu a Pátria Portuguesa!

Nas horas de epopeia,
como nas horas más,
foi grande, nobre e forte!

O tempo que lá vai!...
Um ano, cem, duzentos,
muitos séculos já,
na história do Mundo.
E hoje, Portugal, fiel à sua sorte,
recorda aquela hora
em que, a primeira vez,
a bandeira sagrada
da nação que nascia
foi erguida, num gesto
de força e de alegria,
por um valente braço português!

Um ano, outro ano, iguais em seu rodar…

E o tempo vai passando…
O mundo, em ansiedade,
entre a guerra e a paz,
mal se atreve a sonhar…

para nós é diferente
o ano que começa.
Não é como ameaça
que a nossa alma o vê.
Ano de esperança e fé,
de orgulho e confiança!
Êste ano traz consigo
a data evocativa
do sonho de Afonso Henriques
feito realidade!

Um sonho que é hoje Portugal,
a pátria heróica, eterna,
aos pés da qual
a nossa alma ajoelha, e reza, e crê!

Fonte: Almanaque Bertrand
Texto/Autor: Maria Lamas
Foto da Net
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