domingo, 5 de março de 2017

Dar de beber a quem tem sêde…


Levou com firmeza o copo à bôca, empinou-o e deixou que o vinho lhe escorregasse lentamente pela guela abaixo, ao mesmo passo que sentia um prazer muito dôce e muito leve correr-lhe todo o corpo. Fora, na estrada, fazia um calor dos infernos, destes que secam as entranhas a um homem e, por isso, ainda com o copo seguro na mão, êle se pôs a gozar o prazer daquele refrigério, a frescura pacificadora que apagava o fôgo que sentia arder-lhe por dentro. Limpou em seguida os lábios, com as costas da mão encardida, primeiro para um lado, depois para o outro, alisando os pêlos do bigode e da barba que lhe pareceram menos rebeldes e mais macios. Só depois passou o copo sobre o zinco do balcão, com um gesto lento e satisfeito. Parecia dizer no seu íntimo que uma hora daquelas merecia bem alguns sacrifícios e algumas penas.
O taberneiro, que o espiava com desconfiança, pegou no copo sujo, mergulhou-o na água do alguidar, agitando-o violentamente, para logo o suspender no ar, a escorrer. Ia, porém a pousa-lo ao lado dos outros, que por alturas se alinhavam em duas fileiras, quando o homem sentiu que a sede lhe ardia de novo na garganta e nos lábios.
- Vase-me mais dois, ó sô Custódio!
O taberneiro olhou-o de soslaio e levou o copo a encher à torneira da pipa, e outra vez o homem viu com alegria o vinho ferver numa espuma leve.
- Não é má pinga, não senhor! – Disse êle, depois de um momento de contemplação. Em seguida tornou a empinar o copo e sentiu o mesmo regalo descer-lhe pelas entranhas sêcas, como uma brisa líquida que o trespassasse até às profundas da alma.
- Ainda lhe bebia outro!...
Tirou no entanto, umas moedas do bolso e pôs-se a conta-las na palma da mão. Reflectiu um instante, cerrou as pálpebras e mexeu levemente os lábios, como a murmurar uma oração. Deitava contas à porca da vida o pobre, enquanto o outro, detrás do balcão, não parava de o espiar, com os olhos desconfiados, sem perder um só dos seus movimentos. Entretanto êle mostrava-se indeciso. Mas por último não se conteve:
- Bote-lhe outro. Rica pinga, não haja dúvida!...
Outra vez o copo cheio pousou sobre a placa do balcão. Uma espuma rosada ia-se desfazendo aos poucos e poucos, num ferver demorado, que lhe saltava às narinas e lhe arrasava a bôca de água. O homem, porém bebeu aquêle último copo já com outro repouso, sem a sofreguidão dos primeiros, saboreando-o gôlo a gôlo e tomando-lhe o paladar um tudo nada acre, que ao misturar-se com a saliva se ia imperceptivelmente adocicando, num sabor fino e penetrante. Ao cabo daquela delícia, deu um estalo com a língua e repetiu:
- Rica pinga, sim senhor!
O taberneiro, porém, é que continuava a olhá-lo insistentemente, sem perder um único dos seus insignificantes gestos, como se tudo nêle lhe fosse suspeito e estranho.
Com efeito, a sua figura não era vulgar. Devia ser mendigo ou maltez da estrada, desses sem eira nem beira, que causam terror quando com eles nos cruzamos no caminho. A barba trazia-a de meses; o cabelo, imundo e comprido, caia-lhe sobre a gola sebenta do casaco, e as calças coutas tinha-as atadas com uma corda, cujas pontas lhe pendiam da cintura.
Da rua vinha um bafo quente de forno e uma luz crua que feria os olhos. Dentro da taberna, uma penumbra fresca e úmida envolvia as coisas e, por momentos, só se ouvia o zumbido impertinente das moscas em tôrno do tabuleiro dos queijos e um pingo que, de quando em quando, caía da torneira para dentro de uma medida de lata.
- Isto é que vai para ai uma seca dos diabos, sô Custódio!
Até parece África!
Mas o outro, com as mãos assentes sôbre o balcão e o corpo repousado sôbre os braços, parecia disposto a não lhe dar trôco. Pensava e repensava donde o conheceria aquêle meliante, que assim o tratava por sô Custódio e que êle nunca vira mais gordo. Dava tratos à imaginação e não havia forma de se lembrar. Freguez não era, pela certa, nem nunca fôra, porque sujeito que lhe passasse uma vez, ali pela frente do balcão, e mesmo a quem êle não tivesse medido mais do que um copo de dois decilitros, poderiam estar certos que não lhe esqueceria.
E agora apresentava-se-lhe aquêle vagabundo, piolhoso e sujo, sem a noção das conveniências, a trata-lo com familiaridade pelo nome e a emborcar copinhos, uns atrás dos outros…
Ná, a coisa não lhe parecia limpa! Mas, se por um lado a suspeita e a curiosidade lhe mordiam, por outro, não estava pelos ajustes de se rebaixar a dirigir-lhe a palavra, quanto mais a fazer-lhe perguntas, a dar-lhe confiança. O que era preciso era cuidado. E muito ôlho.
O outro, no entanto, parecia disposto a demorar-se. Sentara-se na beira do banco com um grande à-vontade, cruzara a perna e enrolara pausadamente um cigarro. Depois acendeu-o e puxou umas fumaças muito regaladas, muito calmas. Dir-se-ia o vilão em casa do seu sogro. Ao taberneiro apeteceu-lhe dizer que ali não era asilo nem casa de malta, mas conteve-se. Sempre queria ver em que aquilo dava, e por isso se lhe pôs um brilho muito sério nos olhos fundos.
- Pois é verdade, sô Custódio! Boa pinga tem vossemecê aqui. Há muito que não a bebo assim. Deve ser de algum lavrador cá do sítio não?
O Custódio continuava calado e apreensivo. Também isso não teve jeitos de o molestar, pois não tardou que se pusesse a palrar com entusiasmos de mil questões diversas, dando sempre à conversa um tom familiar, que cada vez mais irritava o outro, servindo-se de expressões que revelavam uma certa intimidade e muito atrevimento. Falou da incerteza dos tempos que corriam, tão diferentes dos antigos, referiu-se á crise, á instabilidade da vida, e acabou por concluir que tudo havia mudado, de uma maneira irremediável, desde o tempo às gentes. Por exemplo, quando é que o sô Custódio se lembrava de um calor assim? O taberneiro fazia trejeitos de impaciência e de espanto, mas êle parecia não dar conta. Já o Inverno tinha sido aquela peste que se vira, e agora por cima chegavam-lhe um verão de reduzir tudo a torresmos… Nem um homem sabia como se haver.
O Custódio cerava com força os lábios para não falar, e a cada instante repetia com os seus botões que aquilo devia ser meliante de primeira, gabiru de que não podia despregar o ôlho.
Onde é que já se vira – sim, onde é que já se vira! – um piolhoso permitir-se tais ares? A coisa começava a cheirar-lhe a esturro. E logo a uma hora daquelas, sem mais ninguém na taberna, vir assim o demo atentá-lo era para um homem desconfiar. Via-o na sua frente, de perna traçada como um senhor, a deitar fumaças para o teto, e no seu íntimo a suspeição crescia de minuto a minuto. Não devia ser por boa que o sujeito se lhe metera em casa, com aqueles despropósitos, com aquela lábia. Entrava ali muito vagabundo de estrada, mas nenhum vira ainda assim, com tais modos e tamanho desplante. Que o não conhecia, lá disso tinha êle a certeza certa, pois não era possível ter-lhe passado debaixo de ôlho um meliante daquela espécie e depois esquecê-lo, assim de pé para a mão.
O homem cada vez se desunhava mais a falar, sempre com muito «sô Custódio» à mistura, como se tivessem andado na mesma escola ou comido do mesmo prato. Não, ali havia coisa, lá isso havia! Agora o tinha êle na sua frente, a passear de um lado para o outro, muito animado, com muito paleio e muitos gestos, e a aproximar-se do balcão com as suas falas meigas. Mas fazer-lhe o ninho atrás da orelha, é que não lhe faziam. E Explodiu:
- Ouça lá, ó santinho, donde é que vossemecê me conhece?
- Donde o conheço?... Ora essa!
- Sim, donde é que vomecê me conhece e onde é que eu já lhe dei confiança para tanta conversa?
- Homem, essa nem parece sua, sô Custódio! Quem haverá aqui nas redondezas que não o conheça?!...
- Isso cá para mim é paleio!
Não pega!...
- Pelo visto, o sô Custódio é desconfiado.
O taberneiro, pelo sim pelo não, passou-se para fora do balcão, não fosse o diabo tecê-las a uma hora daquelas. Deitou-lhe mão a um braço, abanou-o levemente e disse:
- Três copos de dois, soma tudo doze tostões. Toca a passar para cá a massa!
O outro sorriu com uma brandura inefável, meteu a mão ao bôlso, puxou do dinheiro vagarosamente e sacudiu com energia a mão que o agarrava. Ao ver luzir as moedas, o Custódio serenou um pouco mais e tornou a passar-se para dentro do balcão, onde se encostou ainda com certa arrogância, não deixando de pôr em evidência a presença dos seus braços cabeludos e fortes. O vagabundo sorria:
Ora o sô Custódio a desconfiar da freguesia! Isso nem parece seu!...
O outro não retorquiu, um pouco embezerrado, a pensar que talvez se tivesse excedido, mas a verdade, também, é que àqueles meliantes não pode um homem mostrar os dentes.
- Pague-se então lá de três copos de dois.
E bateu sôbre o zinco com uma placa de cinco escudos. O outro abriu a gaveta, debruçou-se, pois na obscuridade a custo via, e contou-lhe para cima do balcão, uma a uma, as moedas do trôco. Por entre as barbas sujas do meliante, o seu sorriso cada vez se tornava mais bonito, de quási
Imperceptível. Recolheu serenamente a demasia, apertou-lhe a mão com um vago sentimento de encanto e tornou à conversa:
- Pois verdade seja: há muito que não enxugava uns copos que me soubessem assim!... Boa pinga, não haja dúvida!
Depois, pareceu meditar um momento, sorriu de novo, e disse:
- Ó sô Custódio, faça o obséquio de me encher mais um copo. É que não sei quando o tornarei a beber assim – e pagou adiantado, com duas, moedas de cobre.
O taberneiro trouxe-lhe o vinho. Êle mirou-o com um sorriso amigo, deitou ao copo a mão forte, e sem respirar enxugou-o até à última gôta. Sentia-se como num céu aberto. Depois passou a mão pela barriga, num terno afago e concluiu:
- Já cá levo para o caminho!
O sol tinha virado um pouco e, sôbre a soleira da porta, desenhava-se já uma mancha larga de sombra.
- São horas! Então, até à próxima!
Custódio rosnou entre dentes:
- Que Deus o leve!
- Seja tudo pelo Senhor! – Respondeu-lhe o vagabundo.
Encaminhou-se para a porta, olhou para um lado e para o outro da estrada, como indeciso no caminho a escolher. Depois, fez uma vénia profunda, levou a mão ao chapéu num comprimento irónico, cuspiu para o lado e foi-se.
O Custódio foi vê-lo à porta. Na mancha ardente da estrada, a sua figura recortava-se a negro, e a cada passo se tornava mais longínqua, comida pela distância, até que se perdeu entre as sombras dos altos eucaliptos.
Ao sentar-se no banco, pousando os braços sôbre os joelhos, o Custódio ainda murmurou:
- não me agradou a pinta do animal!...
E caiu numa grande calma.
De repente, porém, o coração deu-lhe um baque. Correu como um doido à gaveta, agarrou no dinheiro e veio vê-lo à claridade da porta. Era chumbo de terceira ou quarta qualidade. Teve então um, grito de desespero:
- Má raios me partam!
Mas, àquela hora, onde iria o meliante?!
Sentou-se vencido e botou-lhe as contas:
- Quatro copos de dois e mais três mil e quatrocentos de esmola.
Não está mau negócio!
E, num movimento brusco, arremessou ao chão com a placa falsa.
- Comeu-me o ladrão!

Fonte: Revista Ver e Crer Nº3 (Julho 1945)
Texto/Autor: Manuel Mendes
Foto: F. Azevedo
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