Levou com firmeza o copo à
bôca, empinou-o e deixou que o vinho lhe escorregasse lentamente pela guela
abaixo, ao mesmo passo que sentia um prazer muito dôce e muito leve correr-lhe
todo o corpo. Fora, na estrada, fazia um calor dos infernos, destes que secam
as entranhas a um homem e, por isso, ainda com o copo seguro na mão, êle se pôs
a gozar o prazer daquele refrigério, a frescura pacificadora que apagava o fôgo
que sentia arder-lhe por dentro. Limpou em seguida os lábios, com as costas da
mão encardida, primeiro para um lado, depois para o outro, alisando os pêlos do
bigode e da barba que lhe pareceram menos rebeldes e mais macios. Só depois
passou o copo sobre o zinco do balcão, com um gesto lento e satisfeito. Parecia
dizer no seu íntimo que uma hora daquelas merecia bem alguns sacrifícios e
algumas penas.
O taberneiro, que o espiava com
desconfiança, pegou no copo sujo, mergulhou-o na água do alguidar, agitando-o
violentamente, para logo o suspender no ar, a escorrer. Ia, porém a pousa-lo ao
lado dos outros, que por alturas se alinhavam em duas fileiras, quando o homem
sentiu que a sede lhe ardia de novo na garganta e nos lábios.
- Vase-me mais dois, ó sô
Custódio!
O taberneiro olhou-o de soslaio
e levou o copo a encher à torneira da pipa, e outra vez o homem viu com alegria
o vinho ferver numa espuma leve.
- Não é má pinga, não senhor! –
Disse êle, depois de um momento de contemplação. Em seguida tornou a empinar o
copo e sentiu o mesmo regalo descer-lhe pelas entranhas sêcas, como uma brisa
líquida que o trespassasse até às profundas da alma.
- Ainda lhe bebia outro!...
Tirou no entanto, umas moedas
do bolso e pôs-se a conta-las na palma da mão. Reflectiu um instante, cerrou as
pálpebras e mexeu levemente os lábios, como a murmurar uma oração. Deitava
contas à porca da vida o pobre, enquanto o outro, detrás do balcão, não parava
de o espiar, com os olhos desconfiados, sem perder um só dos seus movimentos.
Entretanto êle mostrava-se indeciso. Mas por último não se conteve:
- Bote-lhe outro. Rica pinga,
não haja dúvida!...
Outra vez o copo cheio pousou
sobre a placa do balcão. Uma espuma rosada ia-se desfazendo aos poucos e
poucos, num ferver demorado, que lhe saltava às narinas e lhe arrasava a bôca
de água. O homem, porém bebeu aquêle último copo já com outro repouso, sem a
sofreguidão dos primeiros, saboreando-o gôlo a gôlo e tomando-lhe o paladar um
tudo nada acre, que ao misturar-se com a saliva se ia imperceptivelmente
adocicando, num sabor fino e penetrante. Ao cabo daquela delícia, deu um estalo
com a língua e repetiu:
- Rica pinga, sim senhor!
O taberneiro, porém, é que
continuava a olhá-lo insistentemente, sem perder um único dos seus
insignificantes gestos, como se tudo nêle lhe fosse suspeito e estranho.
Com efeito, a sua figura não
era vulgar. Devia ser mendigo ou maltez da estrada, desses sem eira nem beira,
que causam terror quando com eles nos cruzamos no caminho. A barba trazia-a de
meses; o cabelo, imundo e comprido, caia-lhe sobre a gola sebenta do casaco, e
as calças coutas tinha-as atadas com uma corda, cujas pontas lhe pendiam da
cintura.
Da rua vinha um bafo quente de
forno e uma luz crua que feria os olhos. Dentro da taberna, uma penumbra fresca
e úmida envolvia as coisas e, por momentos, só se ouvia o zumbido impertinente
das moscas em tôrno do tabuleiro dos queijos e um pingo que, de quando em
quando, caía da torneira para dentro de uma medida de lata.
- Isto é que vai para ai uma
seca dos diabos, sô Custódio!
Até parece África!
Mas o outro, com as mãos
assentes sôbre o balcão e o corpo repousado sôbre os braços, parecia disposto a
não lhe dar trôco. Pensava e repensava donde o conheceria aquêle meliante, que
assim o tratava por sô Custódio e que êle nunca vira mais gordo. Dava tratos à
imaginação e não havia forma de se lembrar. Freguez não era, pela certa, nem
nunca fôra, porque sujeito que lhe passasse uma vez, ali pela frente do balcão,
e mesmo a quem êle não tivesse medido mais do que um copo de dois decilitros,
poderiam estar certos que não lhe esqueceria.
E agora apresentava-se-lhe aquêle
vagabundo, piolhoso e sujo, sem a noção das conveniências, a trata-lo com
familiaridade pelo nome e a emborcar copinhos, uns atrás dos outros…
Ná, a coisa não lhe parecia
limpa! Mas, se por um lado a suspeita e a curiosidade lhe mordiam, por outro,
não estava pelos ajustes de se rebaixar a dirigir-lhe a palavra, quanto mais a
fazer-lhe perguntas, a dar-lhe confiança. O que era preciso era cuidado. E
muito ôlho.
O outro, no entanto, parecia
disposto a demorar-se. Sentara-se na beira do banco com um grande à-vontade,
cruzara a perna e enrolara pausadamente um cigarro. Depois acendeu-o e puxou
umas fumaças muito regaladas, muito calmas. Dir-se-ia o vilão em casa do seu
sogro. Ao taberneiro apeteceu-lhe dizer que ali não era asilo nem casa de
malta, mas conteve-se. Sempre queria ver em que aquilo dava, e por isso se lhe
pôs um brilho muito sério nos olhos fundos.
- Pois é verdade, sô Custódio!
Boa pinga tem vossemecê aqui. Há muito que não a bebo assim. Deve ser de algum
lavrador cá do sítio não?
O Custódio continuava calado e
apreensivo. Também isso não teve jeitos de o molestar, pois não tardou que se
pusesse a palrar com entusiasmos de mil questões diversas, dando sempre à
conversa um tom familiar, que cada vez mais irritava o outro, servindo-se de
expressões que revelavam uma certa intimidade e muito atrevimento. Falou da
incerteza dos tempos que corriam, tão diferentes dos antigos, referiu-se á
crise, á instabilidade da vida, e acabou por concluir que tudo havia mudado, de
uma maneira irremediável, desde o tempo às gentes. Por exemplo, quando é que o
sô Custódio se lembrava de um calor assim? O taberneiro fazia trejeitos de
impaciência e de espanto, mas êle parecia não dar conta. Já o Inverno tinha
sido aquela peste que se vira, e agora por cima chegavam-lhe um verão de
reduzir tudo a torresmos… Nem um homem sabia como se haver.
O Custódio cerava com força os
lábios para não falar, e a cada instante repetia com os seus botões que aquilo
devia ser meliante de primeira, gabiru de que não podia despregar o ôlho.
Onde é que já se vira – sim,
onde é que já se vira! – um piolhoso permitir-se tais ares? A coisa começava a
cheirar-lhe a esturro. E logo a uma hora daquelas, sem mais ninguém na taberna,
vir assim o demo atentá-lo era para um homem desconfiar. Via-o na sua frente,
de perna traçada como um senhor, a deitar fumaças para o teto, e no seu íntimo
a suspeição crescia de minuto a minuto. Não devia ser por boa que o sujeito se
lhe metera em casa, com aqueles despropósitos, com aquela lábia. Entrava ali
muito vagabundo de estrada, mas nenhum vira ainda assim, com tais modos e
tamanho desplante. Que o não conhecia, lá disso tinha êle a certeza certa, pois
não era possível ter-lhe passado debaixo de ôlho um meliante daquela espécie e
depois esquecê-lo, assim de pé para a mão.
O homem cada vez se desunhava
mais a falar, sempre com muito «sô Custódio» à mistura, como se tivessem andado
na mesma escola ou comido do mesmo prato. Não, ali havia coisa, lá isso havia!
Agora o tinha êle na sua frente, a passear de um lado para o outro, muito
animado, com muito paleio e muitos gestos, e a aproximar-se do balcão com as
suas falas meigas. Mas fazer-lhe o ninho atrás da orelha, é que não lhe faziam.
E Explodiu:
- Ouça lá, ó santinho, donde é
que vossemecê me conhece?
- Donde o conheço?... Ora essa!
- Sim, donde é que vomecê me
conhece e onde é que eu já lhe dei confiança para tanta conversa?
- Homem, essa nem parece sua,
sô Custódio! Quem haverá aqui nas redondezas que não o conheça?!...
- Isso cá para mim é paleio!
Não pega!...
- Pelo visto, o sô Custódio é
desconfiado.
O taberneiro, pelo sim pelo
não, passou-se para fora do balcão, não fosse o diabo tecê-las a uma hora
daquelas. Deitou-lhe mão a um braço, abanou-o levemente e disse:
- Três copos de dois, soma tudo
doze tostões. Toca a passar para cá a massa!
O outro sorriu com uma brandura
inefável, meteu a mão ao bôlso, puxou do dinheiro vagarosamente e sacudiu com
energia a mão que o agarrava. Ao ver luzir as moedas, o Custódio serenou um
pouco mais e tornou a passar-se para dentro do balcão, onde se encostou ainda
com certa arrogância, não deixando de pôr em evidência a presença dos seus braços
cabeludos e fortes. O vagabundo sorria:
Ora o sô Custódio a desconfiar
da freguesia! Isso nem parece seu!...
O outro não retorquiu, um pouco
embezerrado, a pensar que talvez se tivesse excedido, mas a verdade, também, é
que àqueles meliantes não pode um homem mostrar os dentes.
- Pague-se então lá de três
copos de dois.
E bateu sôbre o zinco com uma
placa de cinco escudos. O outro abriu a gaveta, debruçou-se, pois na
obscuridade a custo via, e contou-lhe para cima do balcão, uma a uma, as moedas
do trôco. Por entre as barbas sujas do meliante, o seu sorriso cada vez se
tornava mais bonito, de quási
Imperceptível. Recolheu
serenamente a demasia, apertou-lhe a mão com um vago sentimento de encanto e
tornou à conversa:
- Pois verdade seja: há muito
que não enxugava uns copos que me soubessem assim!... Boa pinga, não haja
dúvida!
Depois, pareceu meditar um
momento, sorriu de novo, e disse:
- Ó sô Custódio, faça o
obséquio de me encher mais um copo. É que não sei quando o tornarei a beber
assim – e pagou adiantado, com duas, moedas de cobre.
O taberneiro trouxe-lhe o
vinho. Êle mirou-o com um sorriso amigo, deitou ao copo a mão forte, e sem
respirar enxugou-o até à última gôta. Sentia-se como num céu aberto. Depois
passou a mão pela barriga, num terno afago e concluiu:
- Já cá levo para o caminho!
O sol tinha virado um pouco e,
sôbre a soleira da porta, desenhava-se já uma mancha larga de sombra.
- São horas! Então, até à
próxima!
Custódio rosnou entre dentes:
- Que Deus o leve!
- Seja tudo pelo Senhor! –
Respondeu-lhe o vagabundo.
Encaminhou-se para a porta,
olhou para um lado e para o outro da estrada, como indeciso no caminho a
escolher. Depois, fez uma vénia profunda, levou a mão ao chapéu num comprimento
irónico, cuspiu para o lado e foi-se.
O Custódio foi vê-lo à porta.
Na mancha ardente da estrada, a sua figura recortava-se a negro, e a cada passo
se tornava mais longínqua, comida pela distância, até que se perdeu entre as
sombras dos altos eucaliptos.
Ao sentar-se no banco, pousando
os braços sôbre os joelhos, o Custódio ainda murmurou:
- não me agradou a pinta do
animal!...
E caiu numa grande calma.
De repente, porém, o coração
deu-lhe um baque. Correu como um doido à gaveta, agarrou no dinheiro e veio
vê-lo à claridade da porta. Era chumbo de terceira ou quarta qualidade. Teve
então um, grito de desespero:
- Má raios me partam!
Mas, àquela hora, onde iria o
meliante?!
Sentou-se vencido e botou-lhe
as contas:
- Quatro copos de dois e mais
três mil e quatrocentos de esmola.
Não está mau negócio!
E, num movimento brusco,
arremessou ao chão com a placa falsa.
- Comeu-me o ladrão!
Fonte: Revista Ver e Crer Nº3
(Julho 1945)
Texto/Autor: Manuel Mendes
Foto: F. Azevedo
Foto: F. Azevedo
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