quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Um Adivinho á força


Reinava em Samarhaude o sultão Karam-Bou-Lady.
Era um soberano muito amado dos seus súbditos, que só lhe notavam um defeito: dar o «cavaquinho» pelas maçãs, adorá-las, apesar de já não ter dentes para as trincar. Nos jardins do seu palácio, havia um magnífico pomar, que despertava a cobiça de todos os cortesãos. Ái daquele que se atrevesse a tocar, sequer, numa maçã.
Contudo, apesar da mais rigorosa vigilância, as maçãs eram roubadas, não só pelos grandes da côrte, como também por alguns mancebos da cidade, que arriscavam a vida para poderem deliciar-se com tão excelentes frutos.
Até o próprio grão-vizir não pudera resistir à tentação; uma noite, escalou os muros do pomar, como um ratoneiro, para satisfazer a guloseima. Gostou e foi repetindo a proeza…
Ora um grão- vizir não passa despercebido em parte alguma, muito menos em cima de um muro alto. Os seus inimigos formaram uma conspiração, e, numa noite em que êle saboreava uma maçã sultana, (a melhor espécie do pomar) vis assassinos caíram sobre êle e matara-no, fugindo em seguida e deixando o cadáver abandonado, no local do crime.
Dois figurões, que também costumavam ir de noite dar assalto às maçãs do sultão, tinham visto cometer o crime. Um deles era Ben-Douda, um bôbo do palácio; o outro era um mancebo da cidade, chamado Ali. Apavorados com o caso, trataram de fugir; saltaram ao mesmo tempo o muro do jardim, mas tão grande era o seu terror que caíram estatelados, do lado de fora. No mesmo instante agarraram-se mutuamente, julgando cada qual que o outro era o assassino. Felizmente, reconheceram-se.
- Viste? – Perguntou Bem-Douda.
- Vi tudo! – Respondeu Ali.
- Um dos assassinos era o magnate Omar que desde há muito tempo não cessa de tramar intrigas, com o fim de ocupar o lugar do grão-vizir.
- Não podemos denunciá-lo ao sultão, sem que nos denunciemos igualmente. Porém, um crime tão horroroso não pode ficar impune!
- Tens razão… mas que se há-de fazer?
- Escuta – volveu o bôbo. – Amanhã, quando o sultão sair da mesquita, estaciona ali perto; eu, então, apresentar-te-hei, a Karam-Bom-Lady, como o maior adivinho do reino; êle decerto te conduzirá ao palácio. E uma vez lá «adivinharás» tudo o que presenceámos…
Estabelecido êste plano, os dois amigos separaram-se.
No dia seguinte, à hora combinada, Ali encontrou-se na passagem do sultão, ao qual foi apresentado por Bem-Douda. Como era de prever, foi convidado a ir ao palácio.
O sultão de Samarhande em breve ordenou que entrasse nos seus aposentos o famoso adivinho Ali, de quem Ben-Douda lhe contara maravilhas.
- Fala- disse o sultão. – Adivinha qual é o pensamento que me preocupa neste instante.
- Vossa alteza – respondeu Ali – está inquieto com a ausência do grão-vizir, que não se vê desde ontem.
- Acertáste! E que é feito dêle?
- Soberano senhor, o grão-vizir foi assassinado por infames ladrões de maçãs, quando, para bem servir a vossa alteza, vigiava o pomar.
-Mentes! – Exclamou o sultão, muito comovido.
- Estou-o vendo daqui! – Acrescentou Ali em tom inspirado. – Lá está êle, inerte e ensanguentado, ao pé da árvore que dá o fruto delicioso que vossa alteza prefere, a maçã sultana!
Karam-Bou-Lady enviou imediatamente alguns criados a averiguar o caso. Momentos depois, os servos voltaram, muito chorosos, confirmando o que dissera o adivinho.
- Os nomes dos assassinos?... – exclamou o sultão, estremecendo de raiva e de dôr.
Ali fingiu meditar profundamente. Tão grande foi o silêncio que se seguiu, que poderia ouvir-se voar uma môsca. Todos esperavam ansiosos, a terrível revelação.
Ali declarou finalmente:
- Os assassinos foram o magnate Omar e os seus partidários. Cometeram o crime, na intensão de Omar conseguir ser nomeado Grão-Vizir.
O siltão, pálido, comovido, não proferiu uma única palavra; estendeu o braço com a mão aberta, e, com um gesto violento, cortou o espaço da esquerda para a direita.
Bach-Siaf, o guarda privado do sultão, compreendeu perfeitamente a ordem enérgica do seu amo. Agarrou pela nuca o infame e cruel Omar, e, antes que êle tivesse tempo de dizer «ai», decepou-lhe a cabeça, q2ue foi cair aos pés do sultão.
Então Karam-Bou-Lady voltou-se para Ali e disse-lhe:
Nomeio-te adivinho da côrte, com a dignidade de mamamouchi de primeira classe.
Em seguida, ordenou a um camarista que desse a Ali um palácio, ricas vestimentas, soberbos cavalos e que lhe enchesse os bolsos de oiro.
Ali julgou estar sonhando o próprio Ben-Douda nunca esperou que fôssem tantas as graças.
Quando o bôbo se encontrou só com Ali, disse-lhe:
- Estás nomeado adivinho da côrte, e, nessa qualidade, tens que satisfazer, diariamente, os caprichos do sultão.
- Aí é que me doe!- suspirou Ali. – Que hei-de eu fazer?...
- Com audácia tudo se consegue; de resto, estarei ao teu lado para te auxiliar embora com uma condição.
- Qual é?
- É que terei comparticipação em todos os favores que receberes.
- Está combinado…
Desde esse momento, Bem-Douda tornou-se o auxiliar do grande adivinho da côrte, de modo que Ali conseguia, sempre, responder às perguntas do sultão.
Contudo, um dia, ficou bastante embaraçado.
Tendo sido roubado o tesouro do Estado, o sultão exigiu que o grande adivinho descobrisse os ladrões.
- Concedo-te três dias para os encontrares; se no fim do terceiro dia, à hora em que muezzin chama os fieis á oração, não tiveres descoberto os culpados, mando-te cortar a cabeça.
O pobre Ali julgou-se o mais infeliz dos homens; a opulência em que vivia não compensava os terrores contínuos que o assaltavam.
Regressou, muito triste, ao seu palácio e, sentado na fôfa otomana da entrada da porta, fumando no seu chibouk, reflectia sobre a miséria das coisas terrenas, quando ouviu o muezzin, com o seu som agudo, chamar os fiéis á oração da tarde.
- Lá vai um dia! – Murmurou êle com um profundo suspiro.
No dia seguinte, estando igualmente a meditar, ouviu de novo o muezzin:
- La vão dois dias! – Suspirou o mísero.
Finalmente, ao terceiro dia, resignado com a morte próxima, exclamou, de repente, ao ouvir o fatídico muezzin:
- Deus seja louvado! Lá foge o terceiro! Está tudo acabado!
Mas no mesmo instante, um homem que ia passando e que o ouvira, prostrou-se diante dêle, para lhe beijar a mão.
- Senhor! – Disse-lhe o homem banhado em lágrimas – já que tudo sabeis, não nos percas!
Vejo que adivinhasteis que sou eu o terceiro cúmplice… não nos denuncieis e dir-te-ei onde ocultamos o tesouro do sultão!
Como é fácil se supor, Ali prometeu tudo e o ladrão indicou-lhe o sítio onde estava o roubo.
Quando os guardas vieram para o prender, Ali fez-se conduzir à presença do sultão.
- Chegou a hora fatal - disse-lhe êste.
- Ainda não! – Redarguiu Ali – o dia não expirou ainda.
- Mas o muezzin chamou já os fiéis…
- no reino do profeta, a noite legal só começa quando não se pode ver uma pulga nas costas de um negro e eu comprometo-me  a descobrir ô tesouro antes que o sol desapareça do horizonte.
- Devéras?! – Exclamou o sultão, radiante de alegria.
Ali conservou-se pensativo um momento; depois ergueu solenemente a cabeça e exclamou:


- Os ladrões ocultaram o tesouro num velho poço entulhado, que se encontra no jardim abandonado do convento dos derviches!
O sultão radiante, com a boa nova, enviou ao lugar indicado os seus oficiais, os quais lhe trouxeram o precioso tesouro intacto.
- O’ meu filho! – Exclamou num ímpeto de reconhecimento o soberano de Samarhande – pede-me o que quiseres!
- Alteza, o meu desejo mais íntimo é não continuar a ser o vosso adivinho.
Karam-Bou-Lady ainda abanou um pouco as orelhas, mas, fiel à sua palavra atendeu a petição.
Desde então, Ali, cheio de honras e riquezas foi o homem mais feliz de Samarhande.
O lugar de adivinho da côrte do sultão Karam-Bou-Lady continua vago até esta data.

FIM



Fonte: Jornal Infantil Tic Tac Nº2 (15 de Dezembro de 1932) 
Texto/Autor:  Desconhecido
Fotos/Ilustração: Rocha Vieira
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

terça-feira, 1 de novembro de 2016

A borboleta branca


A borboleta branca das nossas terras, a qual, invadindo as hortas vicejantes, acusa gulosas preferências pela fôlha de couve, também é conhecida no Japão; mas aqui, onde as couves rareiam, é para os campos de colza que ela dirige especialmente o vôo caprichoso. Em fins de Abril, estes campos de colza esbrazeiam em florescências amarelas, atapetando planícies enormes, a perderem-se de vista; e então as borboletas brancas, por centenas, por milhares, circunvagam pelo espaço, num banho de perfume. A pequenina musumé das aldeias, ao ir de manhã para a escola, pára por momentos à beira das culturas, embevecida nos aspectos do cenário; e, estendendo as mãositas ao enxame murmura esta cantiga popular:
 - Chôchô chôchô, na no há ni tomare; na no há gá iyenara, té ni tomare…
Que quer dizer:

Borboleta, vem poisar
Na tenra colza; ou então,
Se te não agrada a colza,
Vem poisar na minha mão…

No convite ao insecto, transparece – valha a verdade – um inconsciênte  orgulho pelos encantos da epiderme própria. Faltam-se dados bastantes de observação para julgar se a borboleta obedece ao chamamento. Se eu fosse borboleta, não hesitaria na escôlha; - abandonaria a colza, para ir morrer de fome sôbre os dedos setinosos daquela mãosita de masumé. –

Fonte: Almanaque Bertrand (1940)
Texto/Autor: Wenceslau de Morais (Do seu livro «Serões no Japão»).
Foto da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð