terça-feira, 17 de outubro de 2017

A Porta de Minerva


Da noite vinha o mistério das coisas, o deformar das sombras, nas ruas estreitas e escuras por onde Bernardo Cabral, com o colarinho manchado de sangue, ouvia o écoar dos seus passos e dos que o seu amigo Inácio Gaio, quintanista de medicina, dava a seu lado, discreteando conselhos de boa prudência. As praxes académicas eram violentas e primitivas, mas a única atitude era levá-las a rir. Bernardo não reagira assim deante da primeira troupe que lhe surgiu ao descer o comboio, e embrulhara-se em confusa refrega.
Aquela cidade medieval, de ruazinhas apertadas e tortuosas era o cenário sugestivo onde os poetas eram grandes poetas, os boémios grandes boémios, onde os amores eram belos e fáceis, e donde se bebia, em pura fonte, a segura ciência dos livros e da vida. Coimbra era sonhada como a porta que depois se abriria triunfal sôbre o mundo.
Ao chegar à Real República dos Kágados, onde Inácio lhe tinha arranjado um quarto, tomou contacto com alguns companheiros da casa que o farejaram como a matilha fareja a caça encovada.
Nessa república, famosa entre a academia, conhece uma variada galeria de figuras: os veteranos Manuel Vaz, célebre pela usa força, inteligente e espirituoso; o «Marçalinho», africano de carapinha e pele tostada, herculeo, bonacheirão e simpático, que andava há dez anos em Coimbra e tinha pendurados à janela dois enormes caixotes com galinhas, como aves raras, que muito estimava e cujos ovos vendia à república; o Gil-da-trompa, que ficava à janela até de madrugada a dar piadas a quem passava, tinha tudo no prégo e dormia no chão, com jornais e a capa a fazer de cobertor e por cima uma prancheta de madeira «para fazer pêso»; o Torcato-das-pistolas, que andava a estudar Anatomia e sempre que passava uma página adeante, definitiva e sabida, lhe dava um tiro; o Alpoim, pedante e autoritário, etc.
Com Inácio gaio e Manuel vaz, entra no mundo da boémia e, entre as aulas, as cenas da praxe académica e as noites de vagabundagem, vai decorrendo o tempo.
Estabelece casualmente relações com Mr. Ardisson, um velho Inglês que acabava de chegar a Coimbra com a filha, uma formosa rapariga, de cujos olhos azuis Bernardo fica com saudades. O Inglês é um desses tipos originais e fleugmáticos que fôra casado com uma senhora portuguesa, demorando-se agora em Coimbra, numa pausa de divagação turística e a quem os estudantes, ao verem-no aparecer um dia todo de branco – o que nunca ali se tinha visto – fizeram uma troça sensacional e sóbria: foram formando atrás dêle, uma longa bicha, a um e um, silenciosos e sérios; e primeiro dez, depois trinta, depois cem, por fim uma cobra infinita, cuja cabeça branca era Mr. Ardisson, indiferente como se não os visse, coleava através das ruas da cidade, subia à Alta, perdia-se por entre as casas. Quando Mr. Ardisson, ao cair da tarde, regressa ao hotel, só então, de entre a porta, se volta para trás e tira o chapéu, agradecendo e recebendo uma manifestação apoteótica como vivas à Inglaterra e ao Rei da Lata.
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A queima das fitas, em que os quartinistas recebem as fitas largas e os caloiros são emancipados, é uma festa estrondosa e delirante. Mas naquele ano surge, durante a passagem do cortejo, um conflito com os frutricas, que tem consequências trágicas e põe a cidade em estado de sítio, com tiroteio pelas ruas, assaltos às repúblicas, mortos e feridos.
A academia, em sinal de protesto contra as autoridades da cidade, abandona Coimbra, que fica com o ar de uma cidade deserta.
Passa as férias na quinta onde os pais vivem, numa aldeia da Beira, caçando e correndo os montes, com o seu amigo Pedro e a irmã deste, Maria Teresa, uma rapariga moderna e graciosa, filhos dos donos de uma propriedade próxima, com quem tem relações de amizade fraternal.
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No ano seguinte, quando Bernardo volta a Coimbra, já não é o caloiro ingénuo e incipiente. A sua personalidade começa a marcar-se e a dar-lhe prestígio entre os do grupo de que faz parte, agora como bom elemento. Toma contacto com os literatos e é iniciado nas conjuras políticas. Volta a encontrar Elisabeth, a filha de Mr. Ardisson, num baile em honra de uns congressistas estrangeiros e tenta um flirt sem resultados.
Já não pensa nela quando um dia a encontra com outra senhora um pouco mais velha, a sua prima Catarina, cujo pai, português, vive em Joanesburgo.
Esta é uma mulher de vinte e cinco anos, com um ar civilizado e inteligente, mais interessante do que bonita, ou pelo menos assim o parecia ao lado da belesa vistosa de Elisabeth. Mas Bernardo sente naquela mulher uma presença forte e dominadora. Convidam-no para lhes servir de cicerone no Buçaco e partem no automóvel de Mr. Ardisson. Bernardo julga ver em Catarina, (Kate) os olhares interessados duma mulher que pode ser uma aventura fácil. Perdidos na mata do Buçaco, depois de vários episódios que preparam a cena, no momento em que ela se agarra a êle ao saltar um barranco, beija-a. Mas compreende o equívoco de sai vexado pela atitude tolerante e sorridente daquela mulher superior e livre. Antes disso tinham-se desenhado, da parte de Elizabeth, atitudes que Bernardo interpretou como sendo dum vago ciúme. Mas regressa a uma posição de afastamento e de prudência.
Kate gostava de ouvir uma serenata e Bernardo promete-lha. Essa noite é o início duma aproximação mais justificada. E êle começa a estar verdadeiramente interessado.
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O ambiente académico é agitado por vários conflitos e lutas politicas, que se vão intercalando na acção. As aulas, que decorrem numa atmosfera sonolenta e não o interessam, são uma coisa abstracta e alheia à vida; entre os alunos e os professores há a separação solene e desdenhosa de que resulta uma atmosfera de vaga hostilidade da parte dos que não se vergam a uma sabujice proveitosa. Os incidentes são vários. E Bernardo, com uma indiferença total, vai estudando pouco, fazendo versos, amando e intervindo em movimentos que também o entusiasma pouco, pela sua ideologia acanhada e pobre.
Os amores com Kate tinham tomado um rumo definitivo, mas Elizabeth, certa noite ouve barulho e vê alguém que salta a grade do jardim. Diz supôr que é um ladrão que ronda a casa e, falando da sua perícia de atiradora, resolve dar-lhe caça, se êle voltar. Kate, com quem eram as aventuras nocturnas, assusta-se com a prevenção cujo alcance compreende. Elizabeth sabia que o mistério não era de ladrões e acentua subtilmente a sua ameaça. Bernardo, avisado por Catarina, toma as cautelas necessárias, mas uma noite, sente o perigo da aventura.
Kate resolve confessar a Elizabeth quem é o visitante nocturno que ela viu no jardim, desarmando assim as suas intenções. O drama escondido de Elizabeth destapa, então, uma ponta do véu que o oculta. E os dois amantes regressam à sua liberdade sem sombras inquietadoras. Até que a festa da Queima da Fitas, em que Bernardo toma as fitas de quintanista, trás a Coimbra os pais dêle, com quem veio Maria Tereza, a sua amiga de infância. Já não a via há três anos. Parece-lhe outra. E atira-lhe uma flôr do carro, não pondo nisso qualquer intenção de galanteio. Kate viu o gesto e, sem ciúmes, pois sabia que não era caso de tê-los, vem mais tarde a meditar nos sentimentos de Bernardo para com ela e pensa que êle a admira e deseja mais do que a ama. Se isto, ao princípio, não lhe interessara até ao ponto de o esclarecer, agora sentia a inquietação de conhecer a verdade. Mas sabe que estando perto de Bernardo o dominará sempre. E resolve partir para Joanesburgo, onde irá passar um ano, pois deixou lá todas as suas coisas e tem necessidade de voltar. Bernardo tenta desviá-la dêsse intento, mas acaba por aceitar a separação temporária. Acompanha-a a Lisboa e Catarina parte, dizendo tencionar demorar-se só três mêses.
Bernardo volta para Coimbra. Depois vai passar férias a casa dos pais. Leva os livros de estudo, isola-se. O seu amigo Pedro regressou de Berlim, engenheiro e militarista, admirador da cultura e da força prussianas; sua irmã Maria Tereza é uma presença doce e alegre que Bernardo sente sem pensar. Para se entregar mais completamente aos livros, fugindo ao convívio com aqueles dois amigos, sobretudo para evitar a presença de Maria Tereza, refugia-se na pequena casa duma quinta longínqua, perdida entre os montes e pinheirais, na falda da serra. Na casa abandonada onde só vive o caseiro velho, a mulher e uma filha, as noites dum silêncio pesado, cercam-no da sua solidão de exílio. Das trevas só vem o rumorejar dos pinhais, o uivo dos lobos e o piar das corujas à caça.
Ao cair duma dessas noites de ambiente denso e inquietante, ouve lá fora uma voz que chama de longe, apagada e indistinta. Vai à janela e ouve o mesmo grito distante, entre os pinhais. Acorda o caseiro, pega na espingarda e, à luz duma lanterna, seguem na direcção da voz que se calara. Encontram Pedro com a irmã nos braços. Tinham vindo dar um passeio para aqueles lados e quando iam já de regresso a casa, ela caiu e partiu uma perna. Na impossibilidade de montar outra vez a cavalo; Pedro tentara chegar á aldeia mais próxima, mas o pesado fardo esgotara-lhe as forças. Bernardo levanta maria Teresa do chão e transporta-a até casa. É uma cena dramática.
A estrada é dali a seis quilómetros por caminho de serra. É preciso ir alguém na frente para chamar um automóvel que os venha esperar. Mas Pedo não conhece bem os atalhos, de noite, e tem receio de se perder. Bernardo improvisa uma padiola para transportar Maria Tereza. Com o velho à frente, de lanterna na mão, partem, mas ao fim de pouco tempo, Pedro não pode mais. Quere que esperem ali. Bernardo não concorda e pegando sozinho em Maria Tereza, que tem sempre o mesmo sorriso doloroso, sem um gemido de dôr, continua a caminhada. Os sentimentos de Bernardo definem-se no decorrer daquela situação e sente o que Maria Tereza é para êle. Ao chegarem por fim à estrada, esperam ali.
Quando os faróis do automóvel dão de repente na cara de Bernardo, Maria Tereza nota-lhe a expressão triste e endurecida. Há um breve diálogo em que as palavras veem pesadas e presas ao que fica por dizer.
Mas no dia seguinte Bernardo regressa ao seu isolamento.
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Volta para Coimbra, faz acto do quarto ano. Vem, em seguida passar uns dias de férias a casa, e dá-se a aproximação decisiva com Maria Tereza. Pouco tempo depois regressa, novamente à velha cidade universitária. Estuda, afunda-se na ciência convencional e poeirenta dos livros de direito. Naquele ambiente vive o último ano lectivo. As cartas que ainda recebe de Kate são como a correspondência dum amigo íntimo. Mas sente-se fechado, cercado, entre livros e paredes. Tem necessidade de se libertar depressa daquela atmosfera de Coimbra, da vassalagem a um espírito enquistado que se lhe mete deante das ideias e dos outros livros que lhe interessam, tolhendo-o como um fato apertado a prender-lhe os movimentos do corpo e do espirito.
O acto de formatura é o ponto final daquela vida agitada, de que sai com uma experiência negativa, mas útil pelo inconformismo e pelo conhecimento que dela resultou.
Ao sair da sala de actos, aprovado, os condiscípulos e os amigos rasgam-lhe a farpela, deixando-o totalmente nú, como é de praxe. Então sente nisto o gesto simbólico e inconsciente de quem lhe arrancasse a camada artificial inútil que se lhe pegara à pele, e o mandasse, puro, limpo e liberto, entrar enfim no verdadeiro caminho.
E debaixo da capa que o vento agitava, parecia-lhe ser agora, em plena força, um homem livre.

Fonte: Revista Ver e Crer N.º2 (1945)
Texto/Autor : Branquinho da Fonseca
Foto da net
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