terça-feira, 23 de julho de 2019

Ritornelo


Claro dia. Um raio de sol baixava em frecha sobre a torre. A frontaria da Ermida e as naves fulguravam douradas. Soava docemente no ar sereno o estribilho de uma cantiga, muito vago, mas quem conhecia o tom compunha a estrofe. Era a moda dos «Olhos negros». Começava assim:

«Deus do céu, Senhor meu Deus!
Que olhos negros tão fatais…

E retomava:

A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos iguais…»

O Velhinho, voltando a cabeça, já encontrou o olhar meigo da velhinha. Sorriam. E a cantiga sempre ao longe, no frescor matinal dos campos.
- Quem será? – Indagou a velhinha, agitando a cabeça dentro do bioco. – Quem cantará?
O velhinho encolheu os ombros, sorrindo, acenou balançando a mão trémula na direcção do campo; e suspirou:
- Vai para oitenta anos!
- Oitenta anos! – Disse a velhinha sem tristeza.
- Lembras-te? Ainda não eramos noivos…
- Ainda não eramos.
- Faláramos somente, uma ou duas palavras no decorrer do serão. Vestias uma saia de ramagens e trazias uma rosa vermelha no corpete.
Encolheram-se, baixaram as cabeças.
Por fim o velho disse:
- Fizeram-me cantar… improvisei.
Olharam-se e as pupilas quase extintas tiveram um relâmpago de malícia.
- Fingiste não perceber – disse o velhinho, raspando a terra com o cajado.
- Bem que percebi.
Calaram-se e a cantiga, mais próxima:

A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos iguais.

- E não tinha – disse o velhinho.
A velhinha sacudida pelo riso, foi-se levantando tremulamente.
- Onde vais?
- Quero ver quem canta. Anda ali pelas terras de trás. A voz é de moço.
- Quero ver também.
O velhinho ergueu-se, levando a mão em pala à altura dos olhos.
- É um rapazola. Eu não disse?
- Vai carreando. É Carreiro. Quem será?
O velhinho por sua vez encolheu os ombros, sempre a olhar, mudo de enternecimento!

«A própria Virgem Maria…

Disse no estribo o cantador. E o velhinho, muito baixo, passando a mão pelos ombros da velhinha, atraiu-a docemente e terminou a quadra:

«Não tinha uns olhos iguais».

Sentaram-se calados. O tom da cantiga foi morrendo ao longe e o silêncio caiu, apenas interrompido pelos chilros da passarada.
Subitamente a porta da igreja abriu-se de par em par e o vigário, assomando na soleira, não conteve um grito de indagnação:
- Eh! Corja!
Os velhinhos estremeceram e apartaram-se.
- Então, que é isto? Aos abraços aqui diante de Deus!
Vendo, porém, a figura do velhinho e o rosto encarquilhado da velhinha, desatou a rir, andando com o olhar de um para o outro.
- Pois ainda!...Ora sim senhores!
Olhem que já lá vão velhíssimos anos!
Até me parece que vocês casaram por aí, ao ar livre, à sombra das árvores. As pedras da Ermida dormiam ainda na rocha de onde vieram. Não se me dava jurar que foi o próprio Deus quem vos casou, porque não havia padres nesse tempo… E desatou a rir…
Eh, eh, eh! – Fez o velhinho… - olhe que somos da mesma idade, reverendo. Bem bons anos, bem bons anos!... O sr. Vigário era um rapaz e foi o primeiro casamento que fez.
E o vigário, dando a mão a beijar, sempre a rir:
- Pode ser – disse – mas, já me não lembra… - E, batendo de leve no ombro do velho:
- Mas então que foi isso hoje? …
A manhã, o bom sol ou as travessuras dos pássaros, porque andam delirantes, os patifes?… Que foi isso? E para a velhinha: Hein, velhota, que foi?
- Foi a cantiga do bom tempo, senhor vigário – disse o velhinho, estalando os dedos. – Uma cantiga do bom tempo.
- Uma cantiga que ele fez aos meus olhos, quando noivo… - disse a velhinha, baixando a cabeça e torcendo as franjas do chaile; e cantou baixinho:

«Deus do céu, Senhor meu Deus…

E o velhinho risonho:

«Que olhos negros tao fatais…

- Ora! Não conheço eu outra coisa!
- Exclamou o vigário. – Por sinal que acaba com um formidável sacrilégio.
E os três, juntando as cabecinhas brancas, cantaram, como se balbuciassem um segredo para que os santos, lá dentro, não ouvissem:
«A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos iguais…»

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Coelho Neto (Do livro «Baladilhas»)
Foto da net
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