Claro dia. Um raio de sol
baixava em frecha sobre a torre. A frontaria da Ermida e as naves fulguravam
douradas. Soava docemente no ar sereno o estribilho de uma cantiga, muito vago,
mas quem conhecia o tom compunha a estrofe. Era a moda dos «Olhos negros».
Começava assim:
«Deus do céu, Senhor meu
Deus!
Que olhos negros tão
fatais…
E retomava:
A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos
iguais…»
O Velhinho, voltando a
cabeça, já encontrou o olhar meigo da velhinha. Sorriam. E a cantiga sempre ao
longe, no frescor matinal dos campos.
- Quem será? – Indagou a
velhinha, agitando a cabeça dentro do bioco. – Quem cantará?
O velhinho encolheu os
ombros, sorrindo, acenou balançando a mão trémula na direcção do campo; e
suspirou:
- Vai para oitenta anos!
- Oitenta anos! – Disse a
velhinha sem tristeza.
- Lembras-te? Ainda não
eramos noivos…
- Ainda não eramos.
- Faláramos somente, uma
ou duas palavras no decorrer do serão. Vestias uma saia de ramagens e trazias
uma rosa vermelha no corpete.
Encolheram-se, baixaram as
cabeças.
Por fim o velho disse:
- Fizeram-me cantar…
improvisei.
Olharam-se e as pupilas
quase extintas tiveram um relâmpago de malícia.
- Fingiste não perceber –
disse o velhinho, raspando a terra com o cajado.
- Bem que percebi.
Calaram-se e a cantiga,
mais próxima:
A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos
iguais.
- E não tinha – disse o
velhinho.
A velhinha sacudida pelo
riso, foi-se levantando tremulamente.
- Onde vais?
- Quero ver quem canta.
Anda ali pelas terras de trás. A voz é de moço.
- Quero ver também.
O velhinho ergueu-se,
levando a mão em pala à altura dos olhos.
- É um rapazola. Eu não
disse?
- Vai carreando. É
Carreiro. Quem será?
O velhinho por sua vez
encolheu os ombros, sempre a olhar, mudo de enternecimento!
«A própria Virgem Maria…
Disse no estribo o
cantador. E o velhinho, muito baixo, passando a mão pelos ombros da velhinha,
atraiu-a docemente e terminou a quadra:
«Não tinha uns olhos
iguais».
Sentaram-se calados. O tom
da cantiga foi morrendo ao longe e o silêncio caiu, apenas interrompido pelos
chilros da passarada.
Subitamente a porta da
igreja abriu-se de par em par e o vigário, assomando na soleira, não conteve um
grito de indagnação:
- Eh! Corja!
Os velhinhos estremeceram
e apartaram-se.
- Então, que é isto? Aos
abraços aqui diante de Deus!
Vendo, porém, a figura do
velhinho e o rosto encarquilhado da velhinha, desatou a rir, andando com o
olhar de um para o outro.
- Pois ainda!...Ora sim
senhores!
Olhem que já lá vão
velhíssimos anos!
Até me parece que vocês
casaram por aí, ao ar livre, à sombra das árvores. As pedras da Ermida dormiam
ainda na rocha de onde vieram. Não se me dava jurar que foi o próprio Deus quem
vos casou, porque não havia padres nesse tempo… E desatou a rir…
Eh, eh, eh! – Fez o
velhinho… - olhe que somos da mesma idade, reverendo. Bem bons anos, bem bons
anos!... O sr. Vigário era um rapaz e foi o primeiro casamento que fez.
E o vigário, dando a mão a
beijar, sempre a rir:
- Pode ser – disse – mas,
já me não lembra… - E, batendo de leve no ombro do velho:
- Mas então que foi isso
hoje? …
A manhã, o bom sol ou as
travessuras dos pássaros, porque andam delirantes, os patifes?… Que foi isso? E
para a velhinha: Hein, velhota, que foi?
- Foi a cantiga do bom
tempo, senhor vigário – disse o velhinho, estalando os dedos. – Uma cantiga do
bom tempo.
- Uma cantiga que ele fez
aos meus olhos, quando noivo… - disse a velhinha, baixando a cabeça e torcendo
as franjas do chaile; e cantou baixinho:
«Deus do céu, Senhor meu
Deus…
E o velhinho risonho:
«Que olhos negros tao
fatais…
- Ora! Não conheço eu
outra coisa!
- Exclamou o vigário. –
Por sinal que acaba com um formidável sacrilégio.
E os três, juntando as
cabecinhas brancas, cantaram, como se balbuciassem um segredo para que os
santos, lá dentro, não ouvissem:
«A própria Virgem Maria
Não tinha uns olhos
iguais…»
Fonte: Almanaque Diário de
Notícias (1954)
Texto/Autor: Coelho Neto
(Do livro «Baladilhas»)
Foto da net
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