Chamou-nos a atenção, logo que chegamos à
pequena cidade de Apia, na Samoa Britânica, aquela rapariga polinesiana, de uns
vinte e três anos, descalça e com um vestido estampado com desenhos floridos.
Vendo-a por tôda a parte, percebemos, em breve, que nos seguia os passos. O
mercador, que interrogámos sôbre quem seria ela, respondeu simplesmente: «Fa’a-Samoa – costumes de Samoa – quer
apenas travar relações.»
Levara-nos ali o projecto de um filme sobre a
vida nativa nos mares do Sul. Éramos sete ao todo – minha mulher, meus três
filhos pequenos com a governante irlandesa, Annie, meu irmão e eu. Escolhemos
Savii, no extremo oeste das ilhas de Samoa, para fornecer quadros e cenas ao
filme documentário, e o vilarejo de Safune, como quartel-general. Detivemo-nos
em Apia afim de regularizar certos papéis, e adquirir numa alfaiataria as
roupas leves necessárias.
Certa feita, como os meus filhos brincassem em
frente do bangalô onde nos hospedáramos, a rapariga samoana ficou a contemplá-los
de longe, até que, num dado momento, a bola com que jogavam rolou na estrada.
Surgiu assim o pretexto, por que ela andava ansiosa. Apanhou-a do chão e,
dirigindo-se para as crianças, murmurou timidamente: «Meu nome é Fialelei.»
Eles sorriram, ela respondeu com outro sorriso,
e tornaram-se desde então grandes amigos. Os meninos trouxeram-na à varanda
onde nos achávamos sentados. «Por favor», desculpou-se a rapariga - «Fa’moli-moli – Que os seus corações se
aquietem. Estou apenas brincando com os pequenos». Tinha uma voz deliciosamente
suave -. «Fez bem em vir» -, respondemos.
Daquele dia em diante, vimo-la sempre a fazer
companhia aos meninos. Cuidava além disso, de Annie, a quem o calor opressivo
fizera mal. Dormia em nossa rêde, na varanda. Quando Annie melhorou, disse que
Fielelei fôra um presente dos céus. Descobrimos que o nome Fialelei
significava: «aquela que deseja bem a todos». Ia-lhe o nome à perfeição.
Quando embarcámos para Savii, despedimo-nos de
Fialelei. A rapariga beijou as crianças a seu modo, isto é, esfregando-lhes o
rosto com o nariz. Quis pagar-lhes os serviços que prestara. Não aceitou; e
disse, cruzando os braços atrás das costas:- Só o facto de os ter conhecido
basta para regalar-me de prazer.
Houve já quem descrevesse Safune como um
verdadeiro paraíso. Não fosse a praga de môscas, efectivamente o seria. Embora protegêssemos
o bengalô com telas, algumas, ainda assim, entravam. Não há conselhos ou
advertências com que os brancos tenham podido persuadir os nativos da ação perigosa
das môscas. Não conseguimos convencer jamais, sequer os nossos próprios
empregados, de que deveriam exterminá-las. Tabú, diziam, sacudindo a cabeça. Nestas
condições irrompendo de súbito na aldeia um surto epidémico de desinteria
amebiana, as môscas espalharam-se por tôda a parte e casa não houve, na
localidade, em que não encontrasse pelo menos uma vítima do mal. Pedimos a Deus
que protegesse a nossa.
Certa noite, um barco atracou em Safune. Na
esperança de que trouxesse de Apia algum socorro efectivo, apressamo-nos rumo á
praia. –Não – nenhum médico – disse-nos o barqueiro indígena. Ouvimos então
alguém que nos chamava. Era Fialelei.
- Veio de tão longe, apenas para vernos? – Perguntei.
- Ouvi falar na epidemia, e fiquei preocupada, -
respondeu. A rapariga tinha deixado os seus pagos, e vindo para uma aldeia,
assolada de peste, por bondade para conosco, - uma família estranha com a qual
só convivera duas curtas semanas.
A epidemia levou grande número de vidas. Annie
foi atingida. Dias houve em que perdemos totalmente a esperança de salvá-la. Não
sei o que teria sido de nós, sem Fialelei. Encarregava-se de ferver a água, de ver que as frutas e os legumes estivessem
intactos, pois a menor arranhadura na casca abriria caminho à infecção. Passava
as noites sentada á cabeceira de Annie, quando o estado desta se agravo. Nem sei
a que horas dormia.
Tabú ou não tabú, dava cabo das môscas, e
obrigava os criados a fazê-lo. Um negociante do lugar exclamou, ao saber disto:
- Vivo na ilha há tantos anos, e nunca vi indígena algum tocar nas moscas! – Dentro
de algum tempo, a epidemia entrou a declinar. Annie sarou, o calor decresceu,
as fôlhas dos coqueiros balouçaram ao sôpro do vento sul.
Vivíamos em contacto constante com as gentes da
terra, como se formássemos todos uma família unida e numerosa. As crianças
andavam por tôda a parte, com um «lava-lava» cingido ao corpo, e os colares de
conta vermelha que Fialelei lhes colocava em volta do pescoço. A rapariga
ensinava os pequenos a dansar, a nadar, a mergulhar, e dentro em breve êles sabiam
de cor as lindas canções samoanas que ela, com frequência, cantava. Decidí que
o nosso filme seria exibido, na América, ao som daquelas músicas nativas.
Como disse linhas acima, o que nos levara alí
fôra o projeto do filme. Comecei entretanto a recear que não fosse possível
pô-lo em prática. Tínhamos que escolher os atores entre os naturais do país, e
dinheiro, para aquela gente, não significava cousa alguma. No meu primeiro filme, «O Nanook do Norte», a
eterna luta dos infatigáveis esquimaus contra a neve, o frio e a fome,
constituíu, por si mesma, o drama. Os samoanos, esses tinham apenas de estender
um braço preguiçoso, e as bananas douradas lhes caíam nas mãos. Como induzí-los,
então, ao trabalho que nos interessava? Outros brancos, antes de nós, já o
haviam tentado em pura perda. Víamo-nos em face dos costumes, dos modos de ser
daquelas criaturas, incapazes de apreender os nossos objectivos. Havia além
disso os obstáculos oriundos de rituais e formalidades da ilha; tínhamos que
consultar, a cada momento, os chefes e cabeças de família. Era constante o
perigo de violar os misteriosos e obscuros tabús.
Se «Moana dos Mares do Sul» pôde, afinal, surgir
na tela, foi graças a Fialelei. Ela aprendera inglês em uma escola de
missionários e, sendo neta de um grande chefe, conhecia todas as intrigas e
etiquetas da ilha, e podia discutir qualquer questão com os chefes. Compreendo bem
a situação, e desejosa de servir-nos, tornou-se a nossa intérprete, conselheira
diplomática e emissária, no que muito a ajudou o conhecimento que tinha do
protocolo nativo.
Discutíamos, todas as noites, o trabalho a realizar
no dia seguinte. Fialelei, que assistia à troca de idéias, procurava dominar
sua natural timidez, fazendo-nos diferentes sugestões. Por vezes, quando já tínhamos
tudo pronto para a filmagem, a nossa amiga descobria que a heroína esquecera
algum detalhe importante no vestuário. Zangada, e reprovando a distracção,
mandava que a rapariga fosse imediatamente buscar o enfeite que esquecera.
Quando, por já não sei que motivo, um negociante
branco do lugar, cuja palavra era lei para a gente da terra, se irritou com o
nosso projecto, e tentou persuadir os naturais a que não representassem para
nós, Fialelei foi dizer aos chefes que aquela ilha, escolhida entre todas, como
fôra, se tornaria famosa no mundo inteiro graças ao filme, e êste lhes daria
nome e glória. E a cousa foi por diante.
Sempre que disponha de tempo, levava as
crianças, montadas em porcos, a uma lagoa não distante, junto a uma rocha de
que pendiam longas hastes flexíveis. Agarrando-se a elas, a rapariga se deixava
balouçar, de um lado para o outro, traçando largas curvas no espaço, e caía no
lago, llá do alto, levantando grossos borrifos de água. Tinha um todo gracioso,
quando caminhava ou corria; mas, assim, era de facto incomparável. Vê-la nadar
com tanta graça, e tão naturalmente, cercada dos meus garotos, que, quando as
suas forças o permitiam, a acompanhavam de perto, constituía verdadeiramente um
deleite para os olhos. Tendo embora muito finos os tornozelos e os pulsos,
Fialelei, entretanto, era extraordinária e forte. Carregou, certa feita, meu
irmão, que pesa cêrca de 90 quilos, como se fosse uma pluma.
Finalmente, ao cabo de dois anos em samoa,
terminámos o filme. Não nos passou, é claro, pela ideia deixar Fialelei. Enquanto
esperávamos o navio, em Apia, minha mulher preparou-a para o clima do norte. O problema
dos sapatos foi de solução difícil, pois Fialelei nunca os calçara e,
relativamente ao seu tamanho, tinha os pés muito grandes.
A viagem, no navio dos brancos, assumiu no seu
espírito proporções de maravilha. Aprendeu a jogar o deck tennis com extrema habilidade. Nadavam todos os dias, o
capitão e ela, como verdadeiras focas. Na manhã em que chegámos a São
Francisco, a cidade se achava mergulhada na bruma. Ouví junto de mim um soluço
profundo. Era Fialelei – nunca vira a neblina, em toda a sua vida. No hotel,
ficou simplesmente fascinada pelo elevador. – Que andar? – Perguntava-lhe o
ascensorista. – Nenhum andar – respondia. – Vou até lá em cima, e depois até lá
em baixo.
Seguimos dalí para Hollywood, e depois para Nova
York. Aí permaneceu conosco um ano. Adorava balas, sorvetes e maçãs. As pipocas
encantavam-na. Contemplou os arranha-céus e os prodígios de engenharia com o
devido respeito; mas era propriamente o povo o que mais curiosidade lhe
despertava. Um dia, como olhássemos do alto a multidão que passava pela Quinta
Avenida, perguntou-me surpresa: - Como é que estas pessoas todas passam umas
pelas outras sem trocar uma palavra?
Falando-nos alguém nuns dançarinos somoanos que
se exibiam em Coney Island, levámos Fialelei a vê-los, sem a avisar do que se
tratava. Quando ela ouviu a música, e viu os dançarinos, pulou no palco e, num
abrir e fechar de olhos, ei-la a dansar com eles! Terminado o espectáculo,
reuniram-se aqueles samoanos, a milhares de milhas do seu país distante, e
entraram a trocar impressões, entre sorrisos mas, sem embargo, nostálgicos.
Ao sermos notificados pelo Departamento de
Imigração de que a rapariga devia regressar a Samoa, tentámos em vão demover os
agentes daquele serviço. Ao vê-la partir, as crianças e Annie puseram-se a
chorar desabaladamente. Fialelei, muito a custo, libertou-se dos braços que a
prendiam e, sorrindo corajosamente, no meio do pranto que lhe inundava o rosto,
acenou-nos com um adeus.
«Todos foram gentís comigo no trem» -
escreveu-nos, alguns meses mais tarde. - «Do mesmo modo, no navio. Irei até
Safune, para dar, a todos lá, notícias de vocês. Escrevam-me, por favor. Estou de
novo sozinha, como sabem, e sem nada senão o meu aloafa (afeto) por vocês.»
Passou-se isto há 18 anos. Recebemos muitas
cartas; porém nunca mais a vimos.
O seu nome queria dizer «Aquela que deseja o bem
a todos». Nem era outra aliás, a sua norma de vida. Um de nossos amigos, teve
ocasião de conhecê-la, costumava dizer que Fialelei era uma página viva do
Evangelho.
Fonte: Revista
Selecões do Reader’s Digest (Maio de 1942)
Texto: Robert Flaherty
Foto da Revista
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