quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O Colar de Pérolas


Maria Luiza acabava de tomar banho quando a criada lhe anunciou a visita de um agente da Sociedade de Publicidade Teatral. Qualquer outro importuno tê-la hia procurado em vão, mas como se tratasse de um agente de publicidade, ordenou imediatamente que o fizessem entrar para a sala.Ela, que até ali não passara de uma artista de terceira categoria, que ainda não tivera no teatro outra aplicação que não fôsse a de despir-se, nem outro valor além daquele que pode representar um amante rico, pensou de si para si, que o estranho que acabava de lhe bater à porta, talvez trouxesse um contracto vantajoso, e, quem sabe, se uma entrevista na primeira página do jornal.
Maria Luiza vestiu um pijama de sêda, calçou umas chinelinhas, mirou-se no espelho e apareceu na salêta com o melhor dos seus sorrisos.
- A quem tenho a honra de falar.
- João Reis. Agente da Sociedade de Publicidade Teatral.
- Que pretende?
- Vou explicar-lho em duas palavras.
E, tomando atitudes de grande personagem, expoz o fim da sua visita.
- Considero uma injustiça que uma artista talentosa como V. Ex.ª, (Maria Luiza sorri. Parece concordar) não tenha no teatro o lugar de destaque que lhe compete.
E’ provável que a sorte a não acompanhe, mas é preciso que V. Ex.ª não se abandone ao destino; é preciso lutar! Não está certo que uma actriz bonita como V. Ex.ª, uma artista com A, como V. Ex.ª continue a interpretar papeis de terceira ordem! (Maria Luiza, confundida com tanta amabilidade, ofereceu-lhe uma cadeira). E’ uma injustiça, repito. – Muito obrigada!
Ela esboça o mais lindo dos seus sorrisos; êle, continúa sem esmorecer.
- Posso garantir-lhe que, muito brevemente, será V. Ex.ª quem interpretará os primeiros papéis no seu teatro! Sou eu quem lho prometo.
Maria Luiza não compreendêra ainda quais eram as intensões do seu interlocutor, mas aquelas referências à sua pessôa enchiam-na de confiança. E, radiante, como uma criança pequena a quem dão brinquedos, perguntou:
- Para isso, que é preciso fazer?
- ouvir-me, replicou o agente. A que se devem os sucessos? Ao reclame, unicamente ao reclame. E’ êle que atrai os olhos, que provoca a admiração e mantém as posições adquiridas. Quando um artista cai no esquecimento, só tem uma defeza: o reclame. Para o fazer prepara-se um desastre, ou provoca-se um escândalo se preciso fôr. No dia seguinte os jornais publicam o retrato do artista visado e fazem uma reportagem desenvolvida. Imediatamente se enche à cunha o teatro onde êle trabalha. Pois Bem! Nós pensámos organizar scientificamnete este reclame e, foi nesse intuito, que se fundou a Sociedade de Publicidade Teatral, à qual eu tenho a honra de pertencer.
Maria Luiza escutava sofregamente. Ele continuou:
- Mas vamos à prática. O desastre e o escândalo são geralmente perigosos. Nós , preferimos o roubo… Não se assuste! E’ um roubo sem consequências. A cliente escolhe o objecto que desêja ver desaparecer. Por exemplo: O automóvel, um anel de preço, um colar de pérolas, uma camisa modelo de luxo… O objecto roubado fica em poder da Sociedade e a cliente apresenta a sua queixa. Os jornais sob as nossas indicações baseiam-se em pistas erradas, e, quando a curiosidade do público atinge o máximo, o roubo aparece num lugar imprevisto. Veja V. Ex.ª o que não representaria de publicidade se a sua camisa fôsse encontrada numa gavêta da secretária dum escritor de nome!!... Dêsde já lhe podemos garantir um esplêndido resultado. O preço, a combinar. De resto V. Ex.ª só pagará depois de lhe ter sido restituído o furto.
Maria Luiza estava extasiada. Ia decidir-se a sua carreira.
_ Agrada-me a oferta. Mas, diga: o que me vai roubar?
- V. Ex.ª dirá …
Ela exitou um instante, mas de repente, levando as mãos ao pescôço, exclamou:
- Pode ser o colar de pérolas que o Carlos me ofereceu. Vale bem trinta ou quarenta contos…
- Bôa ideia! Irei busca-lo esta noite ao seu camarim.
-E’ muito amável.
- Ainda é cedo para me agradecer. Depois…
Quando Carlos chegou, à hora do almôço, Maria Luiza, radiante, saltou-lhe ao pescôço.
- Graças ao colar que tu me deste, vou ser finalmente uma «artista»…
O amante quis saber o que se passava, mas inutilmente. A resposta era sempre a mesma.
- Tu verás! E’ uma surpresa…
Conforme estava combinado, à noite, o colar que ficara abandonado no camarim, desaparecêra. Maria Luiza por pouco não bateu as palmas de contente, esquecendo que era necessário representar a comédia… Então, gritou, chorou desesperadamente.
Depois do espectáculo, a futura estrêla, apresentou queixa à polícia. O chefe, incrédulo, tomou conta do caso, mas não se convenceu da sua veracidade.
No dia seguinte, Maria Luiza devorou todos os jornais e nem uma linha sequer acerca do seu colar. A dúvida apoderou-se dela. Esperou um dia mais, dois dias, três dias… Do agente nem novas, nem mandados… Do colar, muito menos… quando se convenceu que tinha sido roubada, confessou ao Carlos a sua desgraça… as o amante é que não quis acreditar.
- Bem te conheço!!... Como não gostas do colar que te dei, inventas-te essa história para vêr se eu te comprava outro…


FIM

Fonte: Almanaque D’«O Seculo»
Texto/Autor: Desconhecido
Fotos da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sábado, 18 de novembro de 2017

Uma manada de elefantes



Fui até final da minha tarefa acompanhado sempre pelo meu amigo T.C.
E à sua amável e preciosa companhia, devo – o tornar-se o serviço de que eu ia incumbido – no melhor, mais grato e inesquecível momento de toda a minha vida.
Trinta dias levou o recenseamento da população indígena da área do meu posto. Trinta dias, pois meu espirito viveu as maiores emoções e, meus olhos viram, as mais curiosas e estupendas manifestações da Natureza.
Estes trinta dias, porem, são hoje para mim, trinta fantasmas de saudade!...
Pois, só quem viveu em África; só quem – como eu – parou no coração da selva; em contacto directo com o perigo; nas solidões imensas da floresta; nas profundas e misteriosas noites do sertão; pode dizer, sentir, viver, compreender o encanto e a saudade que nos fica – para o resto da vida – ao acharmo-nos longe, dessas terras, vivendo delas só pelo coração, e, pelo que a retina. Maravilhada, fixou.
*
*   *
Iniciámos a nossa retirada logo após a conclusão dos meus trabalhos.
T.C., aproveitando sempre a belesa das manhãs, convidava-me a marcharmos afastados da caravana.
Procurava, assim, o encontro furtuito com a caça, dando-me ao mesmo tempo o prazer de observar! Observar sempre!
Pois, o meu amigo, bem conhecia a minha satisfação em cada costume novo observados nos animais isso para mim – e ele bem o sabia também – valia mais que matar!
Eram passados vinte e oito dias desde a nossa partida para o mato.
Agora regressávamos.
E, a dois dias da chegada ao M… já quasi havia arrefecido em mim aquela cegueira de estar sempre á espera de encontrar féras. Mas, o acaso ou destino, marcado havia já que um novo espectáculo se oferecia antes da chegada.
E, desse modo, na ante-véspera, já pela noite alta aí por volta das três da manhã fomos acordados ao
- Siô o po n jánba! (1)
Levantámo-nos de chofre.
Saltámos fora do carro e, de espingardas aperradas, dispusemo-nos a vender cara a vida…
Bem problemático seria, no entanto, o resultado da nossa defesa. Mas o instinto da conservação imperava.
Lado a lado, com as espingardas fortemente seguras, lançamo-nos para a frente.
Circundámos o acampamento e… parámos; aguardando, de olhos fitos no mato, o aparecimento dos elefantes!
A noite mantinha-se silenciosa e escura.
A lua há muito declinára. E, o sol, tarde viria iluminar as trevas que nos envolviam.
Somente, lá no alto, as estrelas – olhos brilhantes da Providência – testemunhavam o nosso sobressalto.
Passaram-se dois minutos de angustiosa espectativa.
Súbito, o chão tremeu.
Ouviu-se um rápido e violento estalar de árvores e de ramos. Uma rajada imensa passou por nós, como um furacão. E a terra , pareceu convulsionar-se em terrível tremor subterrâneo.
Passou-me um calafrio pela espinha.
Tive a impressão que ia ser enlaçado pela tromba dum elefante e lançado pelo espaço fóra.
Nervosamente, procurei o olhar do meu amigo. Quis lêr na sua fisionomia a grandesa do perigo. Mas enganei-me! O seu rosto – salvo a expressão fixa da atenção – estava duma calma absoluta! Parecia desafiar aquilo que eu temia – o ataque dos elefantes!
Todavia, o caso não era – e pelo menos ele assim mo disse depois – senão para sustos.
Mas, esse companheiro preciosíssimo dava-me uma confiança absoluta. E’ que, seu caracter, seu tipo, seu temperamento, eram perfeitamente harmónicos com as qualidades conferidas aos heróis lendários.
Bastava vê-lo, num momento como este, para adquirir-mos a certesa de se estar vendo um herói, um dominador, um forte, um homem nascido no perigo e para o perigo.
No entanto o meu receio subsistia.
Aquele infernal parecia cada vez mais próximo de nós.
Felizmente que T.C. calculando o meu susto na razão directa dos meus conhecimentos de caça ás feras, deu-se pressa em tranquilisar-me.
Assim, dando provas dumas grandes faculdades perceptivas, diz-me , no meio daquele cáos de ruidos – numa calma de espírito espantosa – e debaixo daquele escuro ambiente de pavor:
- Afastam-se!...
Olhei-o admirado e confuso…
E , mentalmente, perguntei como pudera ele, tão rapidamente e no meio de semelhante confusão de ruidos, distinguir que os elefantes se afastavam?
- Não viriam, antes, sobre nós?
Mas, essa afirmação era o seu segredo profissional; era o seu forte.
Pois, de facto, parecia que fora ele quem ordenara o afastamento dos elefantes: a retirada da «Bêsta do Apocalipse», que ainda há bem pouco, quasi presentira a devorar-me…


Passada a primeira impressão, quando o ruido da manáda já se extinguia ao longe, voltámos para o carro.
Só, então, o meu amigo se abriu e, pausadamente, como se dissesse a coisa mais natural dêste mundo, ao mesmo tempo que se estendia sobre a cama, exclamou:
- Sabe, meu amigo, desta vez “tive mêdo”!
-Mêdo?
E já titubeando, cheio de sono:
- Sim. E vou explicar-lhe porquê: - Não é fácil assistir-se ás corridas destes animais e ficarmos com o arranjinho e a coragem tal e qual a tínhamos no principio. O elefante, em plena selva, destrói – na maioria dos casos – tudo quanto se opôe à sua passagem.
Depois, consultando o seu pequenino relógio de pulso acrescentou: - E’ tarde, amigo, vamos dormir.
- Mas é que.
- Sim! Pois não quere, logo que amanheça, perseguir a manáda?
- E’ verdade – concordei.
Adormecemos.
Quatro horas depois estávamos a pé e, em breve, equipados para a perseguição.
Montámos nos nossos cavalos e acompanhados por três negros entrámos no rasto dos elefantes.
Era uma manáda colossal!
As pégadas crusavam-se e sobrepunham-se não nos deixando compreender o numero de animais de que a manáda se compunha. Andámos quasi meio dia.
O desânimo começava a apoderar-se de mim, pois receava voltar para traz sem ter conseguido ver, novamente, os elefantes em plena selva.
O receio de me afastar muito das proximidades do posto, - onde já estava – a força escaldante do sol e o calôr exalado da terra, quebravam-me a energia, fazendo-me pensar em desistir.
Cheguei mesmo a esboçar ao meu amigo essa resolução. Mas, ele, dissuadiu-me de tal, garantindo-me que em menos de um quarto de hora voltaríamos a ver os elefantes. De facto assim aconteceu.
Novamente, meus olhos, sempre sequiosos de ver bebiam, ávidamente, os contornos do quadro que se me deparava.
E, por indicação de T.C. – que há muito procurava qualquer coisa, que eu só mais tarde percebi o que era – subimos a uma árvore e dela atentámos nos elefantes.
Então, a minha natureza, sempre disposta a exclamações, em breve caía na interrogação:
- Porque é que os elefantes, volta e meia, rojam a tromba pelo chão, apreendem a terra, atirando-a depois ao ar?
Novo sorriso, enigma, do meu amigo e sua explicação:
- Estão vendo se na sua frente está algum inimigo!... não viu há pouco, antes de subirmos a esta árvore, os cuidados que tive em procurar o ponto donde o vento soprava?
- vi de facto, mas não percebi nessa altura que o meu amigo procurava a direcção do vento, nem consigo perceber agora que relação pode existir entre essa preocupação e o capricho daqueles animais.
- Capricho?! – Diga antes: inteligência! – Pois, saiba amigo., que não é possível a ninguém aproximar-se do elefante ou de qualquer outro animal – da chamada caça grossa – sem antecipadamente conhecer a direcção do vento. E, se até hoje temos conseguido chegar – como agora – até à vista destes animais, sem eles o pressentirem, devemo-lo a esse cuidado, que eu tenho mantido, sem nunca lho dizer, a fim de lhe proporcionar mais esta curiosa observação.
- Quere, então, o meu amigo dizer, que eles atiram a terra ao ar para consoante a direcção que o pó leva se virarem contra o vento e beberem os odôres que os ares trazem, conhecendo dêsse modo a aproximação do inimigo?
- Assim é, meu amigo.
-!...
Voltámos para trás. E no dia seguinte à noite, entravamos no meu «posto».
Assim terminou o meu serviço e a amável companhia do meu amigo, que voltou para o mato…

(1)             Os elefantes

Fonte: Jornal Infantil Tic-Tac n.º 2 (1932)
Texto/ Autor: Fidalgo dos Santos
Foto da Revista
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

terça-feira, 17 de outubro de 2017

A Porta de Minerva


Da noite vinha o mistério das coisas, o deformar das sombras, nas ruas estreitas e escuras por onde Bernardo Cabral, com o colarinho manchado de sangue, ouvia o écoar dos seus passos e dos que o seu amigo Inácio Gaio, quintanista de medicina, dava a seu lado, discreteando conselhos de boa prudência. As praxes académicas eram violentas e primitivas, mas a única atitude era levá-las a rir. Bernardo não reagira assim deante da primeira troupe que lhe surgiu ao descer o comboio, e embrulhara-se em confusa refrega.
Aquela cidade medieval, de ruazinhas apertadas e tortuosas era o cenário sugestivo onde os poetas eram grandes poetas, os boémios grandes boémios, onde os amores eram belos e fáceis, e donde se bebia, em pura fonte, a segura ciência dos livros e da vida. Coimbra era sonhada como a porta que depois se abriria triunfal sôbre o mundo.
Ao chegar à Real República dos Kágados, onde Inácio lhe tinha arranjado um quarto, tomou contacto com alguns companheiros da casa que o farejaram como a matilha fareja a caça encovada.
Nessa república, famosa entre a academia, conhece uma variada galeria de figuras: os veteranos Manuel Vaz, célebre pela usa força, inteligente e espirituoso; o «Marçalinho», africano de carapinha e pele tostada, herculeo, bonacheirão e simpático, que andava há dez anos em Coimbra e tinha pendurados à janela dois enormes caixotes com galinhas, como aves raras, que muito estimava e cujos ovos vendia à república; o Gil-da-trompa, que ficava à janela até de madrugada a dar piadas a quem passava, tinha tudo no prégo e dormia no chão, com jornais e a capa a fazer de cobertor e por cima uma prancheta de madeira «para fazer pêso»; o Torcato-das-pistolas, que andava a estudar Anatomia e sempre que passava uma página adeante, definitiva e sabida, lhe dava um tiro; o Alpoim, pedante e autoritário, etc.
Com Inácio gaio e Manuel vaz, entra no mundo da boémia e, entre as aulas, as cenas da praxe académica e as noites de vagabundagem, vai decorrendo o tempo.
Estabelece casualmente relações com Mr. Ardisson, um velho Inglês que acabava de chegar a Coimbra com a filha, uma formosa rapariga, de cujos olhos azuis Bernardo fica com saudades. O Inglês é um desses tipos originais e fleugmáticos que fôra casado com uma senhora portuguesa, demorando-se agora em Coimbra, numa pausa de divagação turística e a quem os estudantes, ao verem-no aparecer um dia todo de branco – o que nunca ali se tinha visto – fizeram uma troça sensacional e sóbria: foram formando atrás dêle, uma longa bicha, a um e um, silenciosos e sérios; e primeiro dez, depois trinta, depois cem, por fim uma cobra infinita, cuja cabeça branca era Mr. Ardisson, indiferente como se não os visse, coleava através das ruas da cidade, subia à Alta, perdia-se por entre as casas. Quando Mr. Ardisson, ao cair da tarde, regressa ao hotel, só então, de entre a porta, se volta para trás e tira o chapéu, agradecendo e recebendo uma manifestação apoteótica como vivas à Inglaterra e ao Rei da Lata.
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A queima das fitas, em que os quartinistas recebem as fitas largas e os caloiros são emancipados, é uma festa estrondosa e delirante. Mas naquele ano surge, durante a passagem do cortejo, um conflito com os frutricas, que tem consequências trágicas e põe a cidade em estado de sítio, com tiroteio pelas ruas, assaltos às repúblicas, mortos e feridos.
A academia, em sinal de protesto contra as autoridades da cidade, abandona Coimbra, que fica com o ar de uma cidade deserta.
Passa as férias na quinta onde os pais vivem, numa aldeia da Beira, caçando e correndo os montes, com o seu amigo Pedro e a irmã deste, Maria Teresa, uma rapariga moderna e graciosa, filhos dos donos de uma propriedade próxima, com quem tem relações de amizade fraternal.
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No ano seguinte, quando Bernardo volta a Coimbra, já não é o caloiro ingénuo e incipiente. A sua personalidade começa a marcar-se e a dar-lhe prestígio entre os do grupo de que faz parte, agora como bom elemento. Toma contacto com os literatos e é iniciado nas conjuras políticas. Volta a encontrar Elisabeth, a filha de Mr. Ardisson, num baile em honra de uns congressistas estrangeiros e tenta um flirt sem resultados.
Já não pensa nela quando um dia a encontra com outra senhora um pouco mais velha, a sua prima Catarina, cujo pai, português, vive em Joanesburgo.
Esta é uma mulher de vinte e cinco anos, com um ar civilizado e inteligente, mais interessante do que bonita, ou pelo menos assim o parecia ao lado da belesa vistosa de Elisabeth. Mas Bernardo sente naquela mulher uma presença forte e dominadora. Convidam-no para lhes servir de cicerone no Buçaco e partem no automóvel de Mr. Ardisson. Bernardo julga ver em Catarina, (Kate) os olhares interessados duma mulher que pode ser uma aventura fácil. Perdidos na mata do Buçaco, depois de vários episódios que preparam a cena, no momento em que ela se agarra a êle ao saltar um barranco, beija-a. Mas compreende o equívoco de sai vexado pela atitude tolerante e sorridente daquela mulher superior e livre. Antes disso tinham-se desenhado, da parte de Elizabeth, atitudes que Bernardo interpretou como sendo dum vago ciúme. Mas regressa a uma posição de afastamento e de prudência.
Kate gostava de ouvir uma serenata e Bernardo promete-lha. Essa noite é o início duma aproximação mais justificada. E êle começa a estar verdadeiramente interessado.
///
O ambiente académico é agitado por vários conflitos e lutas politicas, que se vão intercalando na acção. As aulas, que decorrem numa atmosfera sonolenta e não o interessam, são uma coisa abstracta e alheia à vida; entre os alunos e os professores há a separação solene e desdenhosa de que resulta uma atmosfera de vaga hostilidade da parte dos que não se vergam a uma sabujice proveitosa. Os incidentes são vários. E Bernardo, com uma indiferença total, vai estudando pouco, fazendo versos, amando e intervindo em movimentos que também o entusiasma pouco, pela sua ideologia acanhada e pobre.
Os amores com Kate tinham tomado um rumo definitivo, mas Elizabeth, certa noite ouve barulho e vê alguém que salta a grade do jardim. Diz supôr que é um ladrão que ronda a casa e, falando da sua perícia de atiradora, resolve dar-lhe caça, se êle voltar. Kate, com quem eram as aventuras nocturnas, assusta-se com a prevenção cujo alcance compreende. Elizabeth sabia que o mistério não era de ladrões e acentua subtilmente a sua ameaça. Bernardo, avisado por Catarina, toma as cautelas necessárias, mas uma noite, sente o perigo da aventura.
Kate resolve confessar a Elizabeth quem é o visitante nocturno que ela viu no jardim, desarmando assim as suas intenções. O drama escondido de Elizabeth destapa, então, uma ponta do véu que o oculta. E os dois amantes regressam à sua liberdade sem sombras inquietadoras. Até que a festa da Queima da Fitas, em que Bernardo toma as fitas de quintanista, trás a Coimbra os pais dêle, com quem veio Maria Tereza, a sua amiga de infância. Já não a via há três anos. Parece-lhe outra. E atira-lhe uma flôr do carro, não pondo nisso qualquer intenção de galanteio. Kate viu o gesto e, sem ciúmes, pois sabia que não era caso de tê-los, vem mais tarde a meditar nos sentimentos de Bernardo para com ela e pensa que êle a admira e deseja mais do que a ama. Se isto, ao princípio, não lhe interessara até ao ponto de o esclarecer, agora sentia a inquietação de conhecer a verdade. Mas sabe que estando perto de Bernardo o dominará sempre. E resolve partir para Joanesburgo, onde irá passar um ano, pois deixou lá todas as suas coisas e tem necessidade de voltar. Bernardo tenta desviá-la dêsse intento, mas acaba por aceitar a separação temporária. Acompanha-a a Lisboa e Catarina parte, dizendo tencionar demorar-se só três mêses.
Bernardo volta para Coimbra. Depois vai passar férias a casa dos pais. Leva os livros de estudo, isola-se. O seu amigo Pedro regressou de Berlim, engenheiro e militarista, admirador da cultura e da força prussianas; sua irmã Maria Tereza é uma presença doce e alegre que Bernardo sente sem pensar. Para se entregar mais completamente aos livros, fugindo ao convívio com aqueles dois amigos, sobretudo para evitar a presença de Maria Tereza, refugia-se na pequena casa duma quinta longínqua, perdida entre os montes e pinheirais, na falda da serra. Na casa abandonada onde só vive o caseiro velho, a mulher e uma filha, as noites dum silêncio pesado, cercam-no da sua solidão de exílio. Das trevas só vem o rumorejar dos pinhais, o uivo dos lobos e o piar das corujas à caça.
Ao cair duma dessas noites de ambiente denso e inquietante, ouve lá fora uma voz que chama de longe, apagada e indistinta. Vai à janela e ouve o mesmo grito distante, entre os pinhais. Acorda o caseiro, pega na espingarda e, à luz duma lanterna, seguem na direcção da voz que se calara. Encontram Pedro com a irmã nos braços. Tinham vindo dar um passeio para aqueles lados e quando iam já de regresso a casa, ela caiu e partiu uma perna. Na impossibilidade de montar outra vez a cavalo; Pedro tentara chegar á aldeia mais próxima, mas o pesado fardo esgotara-lhe as forças. Bernardo levanta maria Teresa do chão e transporta-a até casa. É uma cena dramática.
A estrada é dali a seis quilómetros por caminho de serra. É preciso ir alguém na frente para chamar um automóvel que os venha esperar. Mas Pedo não conhece bem os atalhos, de noite, e tem receio de se perder. Bernardo improvisa uma padiola para transportar Maria Tereza. Com o velho à frente, de lanterna na mão, partem, mas ao fim de pouco tempo, Pedro não pode mais. Quere que esperem ali. Bernardo não concorda e pegando sozinho em Maria Tereza, que tem sempre o mesmo sorriso doloroso, sem um gemido de dôr, continua a caminhada. Os sentimentos de Bernardo definem-se no decorrer daquela situação e sente o que Maria Tereza é para êle. Ao chegarem por fim à estrada, esperam ali.
Quando os faróis do automóvel dão de repente na cara de Bernardo, Maria Tereza nota-lhe a expressão triste e endurecida. Há um breve diálogo em que as palavras veem pesadas e presas ao que fica por dizer.
Mas no dia seguinte Bernardo regressa ao seu isolamento.
///
Volta para Coimbra, faz acto do quarto ano. Vem, em seguida passar uns dias de férias a casa, e dá-se a aproximação decisiva com Maria Tereza. Pouco tempo depois regressa, novamente à velha cidade universitária. Estuda, afunda-se na ciência convencional e poeirenta dos livros de direito. Naquele ambiente vive o último ano lectivo. As cartas que ainda recebe de Kate são como a correspondência dum amigo íntimo. Mas sente-se fechado, cercado, entre livros e paredes. Tem necessidade de se libertar depressa daquela atmosfera de Coimbra, da vassalagem a um espírito enquistado que se lhe mete deante das ideias e dos outros livros que lhe interessam, tolhendo-o como um fato apertado a prender-lhe os movimentos do corpo e do espirito.
O acto de formatura é o ponto final daquela vida agitada, de que sai com uma experiência negativa, mas útil pelo inconformismo e pelo conhecimento que dela resultou.
Ao sair da sala de actos, aprovado, os condiscípulos e os amigos rasgam-lhe a farpela, deixando-o totalmente nú, como é de praxe. Então sente nisto o gesto simbólico e inconsciente de quem lhe arrancasse a camada artificial inútil que se lhe pegara à pele, e o mandasse, puro, limpo e liberto, entrar enfim no verdadeiro caminho.
E debaixo da capa que o vento agitava, parecia-lhe ser agora, em plena força, um homem livre.

Fonte: Revista Ver e Crer N.º2 (1945)
Texto/Autor : Branquinho da Fonseca
Foto da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sábado, 16 de setembro de 2017

Fred Xifarote

O az, manilha e rei de todos os Cow-boys
1.ª Proeza – A traição do “Abutre Peçonhento”


Tarde quente de verão. Nem uma brisa sequer (se quer, não faça cerimónia…) refresca o pinhal de Goal-Average – Off-Side. Um calôr abrasador, daquele que transforma a margarina em manteiga e esta em banha… cá, não tenha mêdo!
Encostadinho a um pinheiro manso, tão manso como um cordeiro branco, Fred Xifarote dorme, pela sexta vez,… a sesta. A seu alado a espingarda, caída no solo, parece dizer ao amo:
Dorme que eu velo
Sedutora imagem
Grata miragem
Plim! Plim! Plim!
Parece dizer, mas não diz, porque uma espingarda não fala e mesmo que falasse quem é que lhe havia de puxar o gatilho em caso de perigo?
 De súbito (estas coisas são sempre de súbito…) um vulto deslisa até junto do atlético Xifarote e contempla-o demoradamente.
Examinêmo-lo E’ um índio horrendo, pintalgado de várias côres e cujos dentes indicam ausência de escova.
O seu olhar mefistofélico revela crueldade, maus instintos. Alma tigrina, fígados de chacal, patranhas de entera, desculpem, entranhas de pantera. Resumindo, concretizando e em síntese: O índio era uma fera com configuração humana e pele avermelhada. Dormindo sempre e sonhando, Fred respirava a largos haustos uns átomos de brisa que de longe em longe lhe passavam rentes às dilatadas narinas. Mal sabia êle – o mísero! – o suplicio atroz que o aguardava!
Mas o destino também vela!
O índio, ao tentar estrangular Fred Xifarote, pizou uma unha encravada a um grilo e êste lavrando o seu protesto barafustou: cri, cri, cri… Xifarote, cujo sono leve tinha fama em todo o território do Alaska, abriu os olhos e fixou o seu inimigo. Este, sabedor, decerto, da força prodigiosa de que Fred dispunha, mudou de jogo fisionómico e sorriu!
O grande maroto sorriu!
Desconfiado, Xifarote interpelou-o:
- Quem és tu?
- Saiba o «rosto pálido» que eu sou o «Abutre Peçonhento». Não me movem quaisquer maus instintos. Pelo contrário! Desejo fumar o «Cigarrinho da Paz» com vomecê!


Fred Xifarote, iludido com o ar franco e leal.. da Camara, do «Abutre Peçonhento, pôz de parte as reservas e começou quebrando uma pinha. Finda a curta tarefa, estendeu um braço para o «Peçonhento» e garganteou:
- Toma lá pinhões…
Enquanto mastigaram a frugal refeição, nada disseram, logo que findaram a trituração dental das sementes de pinheiro, dialogaram:
- « Abutre Peçonhento», indicas-me o caminho mais curto para chegar a Ca-Xarias Town?
Há muito tempo já que não venho para estes lados e estou com receio que a memória me atraiçoe… foi o demo não ter trazido comigo o fiel Zabumba…
- Algum seu amigalhaço, não é verdade?
- Não! Um cavalo que vôa como o vento, raciocina como um bípede e dança o maxixe na perfeição…
- E porque não veio êle?
- Está atacado de reumático nos cascos…
- Coitado! Pobre bicho! Mas não se incomode… Eu serei o seu guia, o farol, o seu farol da … Guia!
E lá foram…
 *****
A três milhas de distância, na direcção S.O.S. – S. O.4.H2 o «Abutre Peçonhento» estacou e pediu vénia a Xifarote para matar uma formiga que supunha ser acuçar o pescoço do fenomenal cow-boy.
Traição! Traição! Traição!
Quando Fred o confiado, o boa pessoa, o coração crédulo, abaixava a perdiz (perdiz ou cerviz,é uma coisa assim…) «Abutre Peçonhento» aplicou-lhe tão violento sôco que Fred, apesar de rijo, não se aguentou nas pernas…
Tremeu, tremeu, tremeu
e caiu silencioso…
*****
Meia noite. Os mochos e as corujas piam sinistra e lugubremente. A Lua sorri, alheiada do que vai na Terra.
Amarrado a uma árvore, Fred Xifarote, imitando a Lua, sorri também.
Ináudita a coragem deste homem! Há curtos instantes, agora, agora, ainda não há meia hora, recuperou os sentidos que havia perdido no pinhal supra-mencionado e já encara a situação com uma fleugma própria de todos os seus xifarotaceos antepassados. Na sua frente, arreganhando a dentuça pessimamente escovada, o traidor «Abutre Peçonhento» ameaça-o com uma faca:
- Finalmente! Vais morrer às minhas mãos herói das dúzias…
Com que então querias que eu fosse o teu guia… Caís-te como um patinho! Eh! Eh! Eh! Vou-te passar pelas brasas e comer…Até os bigodes não deixarei escapar… Depois de bem cozidos, temperados com azeite e vinagre, serão melhores que brócolos! Eh! Eh! Eh!
Ao sexto Eh! Fred Xifarote retezou a musculatura; e com tal força o fêz que o chão estremeceu e a árvore ficou despedaçada.
Completamente livre, Xifarote arrancou das mãos do traidor a faca quási homicida. E embora por suas próprias mãos pudesse transformar o índio em pastelinhos de massa tenra, preferiu arrastá-lo pelos cabelos até Ca-xarias Town e aí entrega-lo ao Sherif…
A coragem, aliada á força héreulea, salvara de uma morte horripilante Fred Xifarote, o az, manilha e rei de todos os cow-boys…

Fonte: Jornal Infantil Tic-Tac nº 5 (15 de Janeiro de 1933)
Texto/Autor: Tio Luiz
Foto da revista
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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

O Relógio


Quando ela recebeu a notícia de que o marido chegava, ficou aterrada.
E agora?
O seu devaneio com o rico angolense, aquela terrível consequência que tivera, estar assim esperando que nascesse o filho, filho que havia de denunciar pela côr a paternidade ilegítima, tudo a apavorava.
Nada, isto tem de ter uma solução qualquer.
E foi ter com o dr. João Maria, seu velho amigo.
Contou-lhe tudo, tudo; e rojando-se-lhe aos pés pediu-lhe um conselho.
- Que hei-de fazer doutor?
O médico comoveu-se e respondeu:
- nada que seja criminoso. Deixe-me pensar. Prometo que hei-de valer-lhe.
No dia seguinte a solução estava achada. João Maria disse à aflita senhora.
_tudo arranjado. Tive uma ideia. O seu marido chega ámanhã. Logo que puder saia a passear com êle. Sabe aquela loja que fica ali na esquina da praça?
- O bric-a-brac?
- Sim, o bric-a-brac. Na montra está um relógio que é um preto com o mostrador no ventre.
- Bem sei. Já outro dia o vi.
- Pois faça de conta que lhe apetece ver a montra. Pare, e, ao dar com o preto, dê um grito e finja que desmaia. O resto é por minha conta. Basta-me convencer o seu marido que o abalo sofrido póde ter graves consequências, que a criança pode nascer preta, que há exemplos de casos assim, etc, etc.
- Deus lho pague.
E a aflita senhora retirou-se.
*
*   *
O marido veio, o passeio realizou-se, a visita à montra, o grito, o desmaio, enfim o que estava combinado.
O compassivo médico disse então ao recemvido.
- Foi o diabo! Isto às vezes tem terríveis consequências. Nêste estado a sensibilidade feminina é exagerada e delicadíssima. Não me admiro que a criança venha preta.
O marido ficou esmagado com tal prevenção. E comentou de si para si.
- Ao menos que ela não se aflija e se conforme. Ao menos isso.
*
*   *
A hora chegou. O dr. João Maria no momento soléne entra no escritório do apavorado consorte, e diz-lhe:
- Pronto. Tudo passado. Era o que eu lhe dizia.
- Preto?
- Sim.
- Mas…
E aqui, a voz presa na garganta, não o deixava falar:
- Mas…
-Mas o quê?
- Não traz o mostrador nem os ponteiros?
Uff: agora posso respirar.
E sentou-se, aliviado, enxugando o suor.

FIM

Fonte: Almanaque D’«O Século»
Texto/Autor: Desconhecido
Foto do Texto
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Sua Magestade, a Mulher


Decididamente, Eva, orgulhosa e triunfante, cortou o cabelo, deu largas ás suas aspirações e desistiu de ser apenas um triste animal de ideias curtas e cabelos compridos – frases feita, repetida, a propósito e a despropósito, pelo seu fiel inimigo: o homem.
Agora, cheia de uma coragem nova – que faz decerto inveja às suas avós, que bordavam a escama de corvina e espreitavam pela cortina levemente erguida, quem passava na rua, porque era feio «ver» - tornou-se a companheira do homem, a sua corrente aos lugares públicos, a sua rival nas profissões liberais e deixou de ser – em boa hora o diga – o passatempo galante, mais ou menos matrimonial, espécie de jardim colorido por onde o rei da criação recreava os olhos e o espírito cançado de enfrentar a aridez da vida.
Libertou-se Eva rebelde do velho jugo e ei-la, agora, cabelos ao vento, pasta debaixo do braço, olhar brilhante de fé e de entusiasmo, passo firme e sereno de quem sabe para onde vai e o que quere, a caminho da Universidade.
E é ver as raparigas aos bandos, correndo ao sol, à chuva, matizando a cidade com a graça da sua juventude! Contentes, lá vão em demanda do bem mais precioso que é a independência, porque precisam de sentir-se aptas a encarar confiadamente o futuro.
Engenheiras, medicas, advogadas, contabilistas, as raparigas preparam-se para a luta, soldados conscientes da grande batalha da vida, unem fileiras e preparam-se para a vitória.
É agradável, é sadio e, sobretudo, é honesto – no ar a palavra honesto tem, realmente de sério – ver a mulher libertar-se da sua misera condição de animal doméstico, a quem é preciso manter e que, depois de usado, quando desagrada, a lei do divórcio misericordiosamente estabelece que o possuidor do objecto seja obrigado a dar-lhe o necessário para não morrer de fome.
- Pois de fraqueza não faz mal
-, Visto que o seu bilhete de identidade reza como profissão apenas esta: doméstica.
É tempo da mulher ir para o casamento obedecendo apenas ao coração, é tempo de Sua majestade a mulher, ser, finalmente, dona e senhora de si própria…
Aqui tem, D. Carolina, o meu sincero parecer sobre aquilo a que a minha amiga, com a sua habitual complacência e pouco hábito de pensar, chama modernismo.
É evidente que a minha amiga não atira êste modernismo por ironia, à guisa de pedrada nos hábitos da geração de hoje -,não, longe disso! – mas porque, com justo orgulho, quis ter a bondade de me apresentar os seus filhos, gente moderna como disse, embora criada por uma mulher antiga. Acredite, D. Carolina, que gostei de ver a Milocas e o Jaime, sádios, belos, agradou-me a ouvir a Milocas, cheia de ideias de independência, confessando, com certa vaidade, as cargas de água que apanha, a pé firme, para provar que será um dos homens de àmanhã. E essa encantadora Milocas, com voz doce, atreveu-se a elucidar que fazia estes prodígios enquanto o Jaime – sem desprimor para a medida de profilaxia que representa um chapéu de chuva – não se abalança até ao campo de Santana, de onde sairá um dia doutor, sem o precioso objecto e um par de galochas, prenda muito útil de sua mãe.
- Molhar os pés faz muito mal ao cérebro – apressou-se a minha amiga a esclarecer, receando, justamente que eu imaginasse que seu filho podia ter dores de cabeça como qualquer de nós…
Pois gostei da Milocas, D. carolina, deixe-me repetir-lho, já que exigiu que eu declarasse o que me parecia o triunfo feminino da nossa época. A sua filha deve ser inteligente – estou já a vêla defender com eloquência um réu confiado, que entregou em róseas mãos o seu destino, e creio bem que saberá fazê-lo com brilho e conseguir uma absolvição.
É muito gentil no seu «doutor» como lhe chama, com uma pontinha de natural vaidade. Mas aqui para nós, devo confessar que não gostei de a ver mandar a criada coser as meias que ia calçar e que detestei o alfinete com que, num gesto íntimo, pregou a sai, onde se notava lamentavelmente falta de colchetes. A D. Carolina reparou, igualmente nêsse pequeno senão, que tentou justificar, risonhamente: Estas intelectuais são assim!...
Êsse é que é o seu engano minha bondosa amiga e, pelo que vejo, é também o engano da sua galante menina. Médica, advogada, escritora, engenheira, jornalista, a mulher para não se tornar num ridículo arremedo do homem, carece de conservar, intactas, as suas qualidades naturais. E olhe que isto de coser meias, se não veio do tempo da mãe Eva, é porque, ela andava descalça.
A sua filha quere ser advogada e faz muito bem porque a advocacia é um modo de vida como qualquer outro. E a D. Carolina já lhe agrada ouvi-la falar nos camaradas, nos códigos, nos artigos de lei, enfim emtudo que faz dela o seu rapaz, mas, pela sua rica e preciosa saúde, D. carolina, diga à pequena que ela não é menos bela, nem menos inteligente se falar também em lar. Os seus afusados dedos não perdem se esboçarem gestos femininos. Deus criou as mãos da mulher para embalarem os filhos do seu amor.
E a profissão?...
Mas não detrupe a verdade dos factos, minha amiga! A profissão é útil para ajudar o lar e nunca para o destruir. Dentro de casa, a doutora, sem quebra da sua inteligência, cede o lugar á mulher. E não esqueça, minha amiga, que a sua filha será a esposa, a mãe de àmanhã. Se isto não for assim, a educação que lhe deu não a preparou para a vida, inutilizou-a. Pode tê-la tonado apta a ganhar dinheiro, o que é muito mas não é tudo. Precisa também, ensina-la a ganhar felicidade.
Diga isto à Milocas, faça-a compreender a única verdade de que me parece andar um pouco arredia. Porque não a manda apanhar flôres, pôr a mesa para o chá, preparar um doce, ocupar-se com o lar que hoje também é o seu? E – se não é indiscrição a Milocas sabe fazer bifes de cebolada, Não! Mas porque espera? Salve o coração de sua filha, fazendo com que ela atenda, carinhosamente, ao estômago é o órgão mais sensível do homem…
Com o seu Jaime dá-se exactamente o inverso. A minha boa D. carolina não se lembra de que êle cresceu, que tem já vinte e cinco anos e que lhe simplifica exageradamente a vida. O seu Jaime tem sempre mais dinheiro do que precisa, num triste mundo em que acontece o contrário quási a tôda a gente; vai para as aulas de táxi porque se levantou tarde, num apalavra, faz ricamente o seu curso.
«Trabalha muito», diz a minha amiga. Mas como, se o leva quási ao colo às fontes onde êle é forçado a água pura da sabedoria! E isto porque não pode servir-lhe em casa! O seu Jaime tem tudo menos energia e coragem para a vida. Será doutor – teimando, são todos… - e depois, é destas coisas… - êle só perdeu ainda três anos…
Mas o que êle nunca será, se a minha amiga continua a educa-lo assim, é um homem, o seu Jaime, com o rico corpo que o Senhor lhe deu e que êle utiliza dançando, em todos os antros nocturnos, salvou-se da vida militar graças a uma poderosa série de cartas de empenho que lhe asseguraram uma apendicite e uma lesão cardíaca, de que, possivelmente, nunca virá a sofre, para seu sossego. Mas esse menino amimado, que acalenta no seu regaço, é bem diferente cá fora e eu gostava que o ouvisse no café, na Faculdade:
- «Somos um país de guerreiros!»… «Expulsámos os espanhóis!»… «Corremos os franceses!»… »Nós vamos defender as colónias!»…
Nós… nós… nós… Ora, nós no calão do seu Jaiminho, são os outros, os que não têm cartas de empenho, os que não marcham ao abrigo de chapéus de chuva, nem vão de táxi apresentar-se na hora em que as suas vidas são precisas.
Quere ter um filho homem D. Carolina? Um filho varão e não apenas o doutor Jaiminho?
Quere um verdadeiro rapaz?
Atire o Jaiminho para a vida, chame-lhe Jaime, sem inho, diga-lhe que é um homem, deixe-o ser soldado como os que não usam as cartas mágicas, deixe-o gozar e sofre a vida sem sentir por baixo a sua mão protectora e creia que, depois de ter sabido o que são deveres, o Jaime fica apto a gozar os verdadeiros direitos do homem.
O mundo não se contorce nesta tremenda convulsão para preparar uma cama ainda mais fofa para o Jaiminho, desta vez e sempre, à custa de uma boa cunha

Fonte: Revista Ver e Crer n.º 3 (Julho de 1945)
Texto/Autor: Alice Ogando
Foto de net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð

sábado, 10 de junho de 2017

A Glória e a Morte


Leonel Badanas, o bombeiro, acaba de vestir a farda cheia de botões amarelos. Está diante do espelho e põe de várias maneiras o rebrilhante capacete. Vira-se para um lado e para o outro. Torna a mudar-lhe a posição sem se decidir por nenhuma. Mas, como não tem pressa, teima em pôr de acôrdo aquêle extraordinário chapéu com a alevantada e grave expressão do rosto.
Por fim, já com os músculos da cara doridos, sai, muito embora não vá plenamente satisfeito com os resultados do ensaio.

Na rua alarga um passo de ginasta e adianta o peito; a espinha flete em arco pondo em grande relêvo as nádegas magras. Apesar disso, Leonel Badanas sacode os braços com arrogância. Tem assim uns longes de galo, de asas meio-abertas, chispando raios de Sol da luzidia crista.
De repente, ao voltar a esquina, tropeça numa súbita idéia e tido aquilo se desfaz. Equilibra-se a custo. Fica uma farda amarrotada; lá dentro, um homenzinho mirrado com uma enorme campânula amarela na cabeça.
Desalentado, o bombeiro retrocede. Empurra a porta e grita, levantando, lentamente as mãos:
- Onde está a minha medalha?!
Sai do quarto uma mulher de feição apagada e receosa:
- Estive a areá-la… Esqueci-me…
- Vai busca-la, mulher!
«Que irritação! Por um pouco entrava no largo sem a medalha!... No largo, onde está toda a gente de Vila Boa à espera da chegada dos corredores!...». E, mesmo agora, enquanto a mulher lhe cose na farda a fitinha que segura a medalha, êle a descompõe.
- Olha se eu me esquecesse, hem?!... – repete  a cada instante.
Pouco depois sai. Rua fora, caminha de novo num passo largo e sêco; peito arqueado, nádegas saídas.
Dependurada no peito, a medalhinha branca agita-se em movimentos desordenados. E reluz ao Sol, num alegre desafio com o capacete.
///
Esta medalha ganhou-a Badanas no Inverno último. Os bombeiros formaram em parada, e o próprio comandante o condecorou. O facto que originaria tal prémio dera-se uns quinze dias antes.
Por um sol-pôsto frio, certo mendigo que ninguém conhecia em Vila Boa chegou ao largo e foi parar junto de uma das vendas. Os ossos saiam-lhe ao redor dos olhos tentando em vão esticar a pele enrugada e escura. O resto era uma confusão de pelos de côr indecisa que lhe tapavam a bôca e o peito. E, no meio das barbas, no fundo dos ossos brilhavam dois olhinhos negros e fixos.
Com mêdo que o enxotassem, como se faz aos cães, não se atreveu a entrar. Sòmente se encolheu ainda mais. Quási tocava com a barba nos joelhos, como se assim, miudinho e sumido, a nortada que corria pela planície não atentasse tanto contra a pele arroxeada que os farrapos destapavam a cada momento.
Em dada altura ergueu a mão que segurava a vara e emitiu uns sons ininteligíveis para um homem que se aproximara. O homem abanou a cabeça negando esmola.
Mas não era esmola que o velho pedia naquele momento. A única dificuldade estava em encontrar as palavras. Os olhos tinham a mesma negra fixidez, só as rugas cada vez mais cavadas ao redor denunciavam o doloroso esforço do cérebro. Conseguiu, por fim, juntar umas palavras. Acaso o homem sabia onde morava o Chico Rata? O homem apontou para um casebre já fora da vila, próximo da estrada que saia do largo.
Arrastou-se, pois aquilo não era bem andar. Ia todo em arco, com a vara numa das mãos e a outra, entre as pernas, premendo o intestino contra a verilha. Era quebrado. Em frente do casebre, os pêlos da barba mexeram-se, por debaixo do nariz, ao sôpro de uma palavra:
- Chico!
Dentro ninguém devia ter ouvido, tão fraca era a voz. Só muito depois apareceu uma mulher. Trazia um fogareiro que colocou no chão de modo a que o vento ajudasse a atear o lume. Feito isto voltou-se para o velho e disse:
- Aqui é que vossemecê vem pedir?
Agachou-se ajeitando os pedacitos de madeira que teimavam em não arder:
- Vá à vila, tiozinho. Lá é que lhe podem dar esmola. Mas - acrescentou após breve silêncio – hoje, não pense nisso; só ao sábado é que dão.
Montado numa bicicleta, um rapaz galgava a subida em direcção ao casebre. Saltou para o chão e foi encostar a máquina na parede. Examinou o velho. De súbito, o rosto do rapaz endureceu:
- Com que então, é você!...
A mulher ergueu-se. Frente um ao outro, os dois homens olhavam-se. O mendigo continua curvado e, como adiantara o queixo, a nortada brincava-lhe com as barbas.
- Sempre acabou por me descobrir, hem? – gritou o rapaz dando um passo – Diga lá o que quere!
O velho recuou. Aquela voz irritada tornara-se-lhe agora compreensível. O rapaz oscilava a cabeça a um lado e a outro como para conter as frases de ira que o atormentavam. Mas acabou por soltá-las:
- Quere casa e mesa, não?
Apontava para o casebre:
- Isto não é hotel! Ponha-se ao largo! Está velho? Que tenho eu com isso? Comer não arranjo eu todos os dias!
Foi à mulher e empurrou-a para dentro da porta. Voltou-se, erguendo os braços para o velho:
- E eu? Quando eu era pequeno, que fez você por mim? Que me deu você? Nem a ponta de um corno! Em que é que você é meu pai? Diga lá!
O mendigo foi recuando. E, sem tirar a mão de entre as pernas, cauteloso pela descida cheia de pedras que o atalho fazia até à estrada, tomou a direcção da vila. Atravessou-a sempre de olhar fixo. Tempo depois, desaparecia, ao longe, enrolado no vento e na noite.


Voltou no outro dia. Bateu de porta em porta. Como não era sábado, foi nula tôda a caminhada daquela manhã. Pelo meio-dia, caiu rente à parede da venda do largo.
Ajeitou-se melhor e permaneceu por muito tempo na mesma posição. Dir-se-iam de cego os olhos que a fome tornara baços. Assim a mesma quietude por todo o corpo como se a imobilidade da morte lhe houvesse tocado o coração. Devia ter passado uma hora quando o mendigo se ergueu. Deixava, abandonados no chão, os seus únicos bens: a vara e o saco vazio. E, de braços abertos, caminhava como os ébrios quando vão, desolados, de cabeça perdida.
Mas, junto ao bocal do pôço que há a um canto do largo, a dôr travou os pés do velho. Cuidadosamente, ajeitou o intestino, entre as pernas. Encostou-se ao bocal do pôço; com o braço livre puxou o corpo, e tombou para dentro.
A pancada na água ouviu-se na venda. Leonel Badanas foi o primeiro a chegar. Debruçou-se e, voltando-se para os que vinham a correr, gritou alegremente:
- Teve sorte, o raio do velho!
Os outros rodeavam o poço. O mendigo estava a uns dois metros do bocal, encostado às pedras esboroadas, ansiado, de bôca aberta como para vomitar. A água dava-lhe pelos ombros.
Então todos compreenderam a frase do Badanas. O velho caíra no estrado de madeira que apanha metade do círculo do pôço, um pouco abaixo do nível da água, e serve para os trabalhos de limpesa quando, no verão, a nascente enfraquece.
Dirigindo o salvamento, Leonel Badanas gritava ordens. Veio uma escada; desceram-na até ao estrado, e o bombeiro preparava-se para saltar quando lhe ocorreu uma idéia. Para quê molhar-se com um frio daqueles? E, depois, se a escada se partisse com o pêso de dois? E , seguindo o curso do pensamento, ordenou ao mendigo:
- Sobe, maroto!
A cabeça do velho desapareceu debaixo de água. Cresceu a espectativa em volta do bocal. Badanas ainda subiu para a escada, mas de novo parou dominado pela mesma idéia. Nêsse momento, reaparecia a cabeça do mendigo. A água escorria-lhe da bôca e das barbas.
Badanas aproveitou a altura:
- Sobe, malandro, se não vou lá abaixo!
Reanimado o mendigo voltou a mergulhar. Queria morrer. No entanto, já debaixo de água, no último momento, não conseguia evitar aquele retezamento de músculos que lhe esticava imperiosamente o corpo. Respirava de novo o bom ar da vida, e o primeiro movimento era a mão que o fazia introduzindo-lhe entre as pernas, compondo a quebradura.
Leonel Badanas começou a insultá-lo com obscenidades. Mas a cena repetia-se sem resultado para qualquer deles.
Até que o bombeiro teve outra ideia. Correu à venda, voltando com uma comprida vara. Intimou o mendigo a subir e, como êste se não mexesse, aplicou-lhe uma varada na cabeça.
- Sobes ou mato-te, malandro!
Agora as pancadas sucediam-se. O velho metia a cabeça debaixo de água: vinha a aflição da asfixia; erguia-se cá fora esperava-o uma varada.
Por fim, espicaçado pela vara, ponteira e firme nas mãos de Leonel Badanas, de cabeça dorida, o velho subiu a escada.
Levaram-no à Câmara. Apareceu gente. O administrador adiantou-se e começou a falar ao bombeiro no seu modo carrancudo de sempre. Nos olhos do velho, sentado nos degraus da escada. De-certo, iam castigar aquêle maldito que o não deixara aquietar-se de vez.
Mas aquilo acabou de um modo diferente. O administrador apertava a mão do bombeiro. As palvras já o mendigo não as compreendeu.
- Vai então ganhar a medalha, hem! – dizia o administrador. – Merece-a; salvou um homem.
Assim foi. Tinha muito pouco tempo a corporação dos bombeiros, sequer um incêndio havia ainda na sua história. De modo nenhum deixaria passar aquela oportunidade que ia justificar os seus préstimos. Estava ali o comandante tomando nota do caso. Perante isso, Leonel badanas baixou os olhos, cheio da natural modéstia dos homens decididos.
Nesse momento, um homem erguia o mendigo. Era o carcereiro que o ia meter na cadeia.
Foi pôsto na rua dois dias depois. Ainda ficou largo tempo em frente ao edifício, com os olhos pousados nas grades do portão. Tinham-lhe dado de comer enquanto lá estivera.
///
Desde o meio da rua, Leonel Badanas encara a multidão, de tal modo que parece ser êle o vencedor da corrida. No entanto, ao entrar no largo, todo o seu optimismo murcha. Ninguém repara nêle.
Um outro propósito levou para ali a população de Vila Boa, dividida entre dois partidos desde há um mês. Metade teima que só Luiz Paderne vencerá; a outra metade dá a mesma vitória a Chico Rata.
Vila Boa – Altinho – Vale Sol-pôsto – Ermidas – Vila Boa, um circuito de cento e tal quilómetros, é o melhor número da festa organizada por um grupo de senhoras, a favor das «Florinhas da Rua».
A gente –bem da vila tem o seu favorito, Luiz Paderne, que há três anos ganha a temível prova. É filho do dono da Mercantil do Sul e atleta do Clube Vilaboense. Um desportista.
O resto da população, a camada baixa, lançou êste ano o homem capaz de vingar as três afrontosas derrotas: Chico Rata, o que não impede que seja mais conhecido pelo «Bela Sardinha», ou simplesmente «Sardinha». O seu ofício é ir todos os dias à Costa e voltar com um caixote cheio de peixe, que vende na Vila e pelas herdades próximas. Daí o apelido. Como usa a bicicleta para se transportar, mais a caixa, colocada sobre a roda de trás, os directores do Glória ou Morte Foot-ball Clube – camisola verde, calção negro e inimigo desde sempre do Clube Vilaboense – fizeram-no sócio à última hora. E aí vai o Bela Sardinha, entre um grupo de garridas camisolas, estrada fora. Um peixeiro.
Agora no largo, a multidão agita-se, procurando melhores lugares. Mas os adeptos do Glória ou Morte estão inquietos. Pelo resultado da prova e por uma notícia que um carreiro participara no Pôsto da Guarda. O homem encontrara um velho afogado na ribeira de Almancil. O velho era aquele mendigo que Leonel Badanas salvara no inverno anterior. Então concordaram todos em nada dizer ao Chico Rata, caso êle ganhasse a corrida.


Era tempo. Gritos ecoaram no princípio da estrada. E a menina que está na varanda volve os olhos lá de dentro do sonho em que permanecia absorta. Será que tem estado toda a tarde pensando no príncipe encantado que nunca mais chega? E, ao reboarem as palmas, quebram-se os últimos vestígios do sonho que enublava aqueles grandes olhos.
Não é Luiz Paderne aquela estranha figura que galga a subida que vem para o largo… É o Chico Rata, exausto, gingando como bêbedo, sobre a bicicleta, a cara sumida, empapada no pó onde as bagas de suor abrem sulcos negros. Eis a Bela Sardinha de bôca aberta num esgar ofegante. E, decerto, há qualquer coisa espantosa no vago ponto que os seus olhos fitam desorbitados. Estica o queixo como se lhe fosse fugindo todo o ar respirável. Ou que, perto dos lábios, corresse a frescura, nunca mais alcançada, da água das fontes quando é Primavera.
Mal passa a meta, arrancam-no da bicicleta. A camada baixa da vila grita e dá palmas. «Viva o Rata! Viva o Glória ou Morte!».
Mas um berro que se repete domina tudo:
- Dêem de beber ao homem!...
Arrastam-no para a venda. Junto ao balcão bem seguro por debaixo dos braços, o vencedor bebe duas cervejas, uma após outra.
E, alastrava a conversa, quando um sujeito, decerto do Clube Vilaboense, toca no ombro do ciclista e diz:
- Rata, o teu pai morreu. Foi esta manhã, afogado na ribeira de Almancil.
O rapaz não compreendeu logo. No meio do mal estar dos directores do Glória ou Morte, o sujeito repete a frase. Mas a alegria volta a todos os rôstos; o Rata, encolhendo os ombros, respondera:
- Quero lá saber. Morreu afogado – morreu lavado.

Fonte: Revista Ler e Crer n.º 3  (Julho 1945)
Texto/Autor: Manuel da Fonseca
Fotos da Revista
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