segunda-feira, 8 de abril de 2019

Dali e Gala


Onde está Gala? Dalí acordou, sobressaltado, a meio de um sonho. Olhou para a sua cama enorme; ninguém. Levantou-se, deu uma vista de olhos rápida pelo quarto. Procurou depois pelas dezenas de compartimentos da enorme mansão. Onde está Gala? A sua amada Gala, a musa que inspirava os seus quadros, e mais do que isso, o seu sono. Onde está Gala?
Dalí abriu a janela do quarto. Meteu a cabeça de fora, olhou para a esquerda e depois para a direita. E sim, do lado de fora, colado á parede, um bilhete com uma mensagem.
Era um hábito de Gala: fugia e deixava um bilhete com pistas, ou algo mais explícito. Dalí leu o bilhete. Nele, apenas uma frase:

Encontramo-nos no campo dos pirilampos
                                                                  Gala

Dalí sorriu. Não era a primeira vez que Gala marcava encontro de noite no enorme, enorme Campo dos Pirilampos.
Era um jardim com uma área mui extensa, a perder de vista, localizada a quilómetros de distância; jardim em que inúmeros pirilampos faziam as suas trocas de luzes. Machos e fêmeas em grande actividade, que lembrava por vezes os faróis anunciando terra firme. Os machos pirilampos, esses, emitiam luz a um ritmo determinado, o objectivo era seduzir as fêmeas para acasalarem. Quanto mais intensa a luz mais as , fêmeas ficavam seduzidas. Luz, escuro, luz, luz, escuro. Mas havia um perigo para os pirilampos macho: uma outra espécie animal andava por ali, pelo jardim, e comia os pirilampos que detectava precisamente pela luz forte. E assim estava instalado o drama que Gala e Dalí adoravam. Para seduzir e fecundar a Fêmea, o pirilampo macho teria de produzir uma luz muito forte, a ritmos regulares; mas quanto mais produzia essa luz, mais perigo corria. Para Gala era a síntese perfeita e era isso que exigia a Dalí: que mesmo correndo perigo de morte, ele produzisse uma luz que a encantasse.
Dalí leu o bilhete e cumpriu o desejo de Gala.
Quando a noite chega, eis Dalí em pleno Campo dos Pirilampos, deitado, escondido, e com uma pequeníssima lanterna, lanterna de menos de um centímetro de diâmetro.
Conhecia o jogo que Gala exigia jogar. Pela luz se prova o amor – dizia Gala -, se uma fêmea não conhece a luz que o seu macho emite, algo está errado. E por isso de tempos a tempos, expressando um ritual de renovação do amor entre Gala e Dalí, os dois se sujeitavam àquele jogo perigoso.
Nessa noite escuríssima, sem o mínimo vestígio da luz da lua ou de luz de fonte humana, ali estava, pois, há muitos minutos, Dalí, deitado, tentando não respirar, com a cabeça virada para cima, e com as mãos em cima do peito, uma delas segurando a minúscula lanterna. Esperava pela chegada de Gala ao Campo dos Pirilampos, escondido – e apenas pela luz emitida tentaria que Gala percebesse onde ele estava.
O perigo residia nisso. Gala vinha com uma espingarda de caçador preparada para disparar sobre os pontos de onde partia a luz. Ela era uma caçadora de luz, como lhe chamava Dalí.
Gala ficava imóvel e calada durante instantes e assistia a alguns diálogos entre pirilampos – diálogos feitos de respostas luminosas ou dessa outra forma de silêncio que era a escuridão – e, quando os localizava, disparava. Nada era falso naquele ritual de renovação amorosa do casal, as balas eram verdadeiras.
Nunca matariam um pirilampo, mas se acertassem em Dalí tudo acabaria. Era um jogo perigoso, mas, apesar de tudo, com muitas hipóteses de dar certo: a luz que Dalí imitiria com a sua pequena lanterna seria reconhecível por Gala. Nisso acreditavam os dois.
Na primeira vez em que haviam celebrado este ritual, Dalí definira as regras. Dirigindo-se a Gala, e com a sua pronúncia forte, dissera:
-Matarás todos os machos e, por fim, ficará apenas um macho emitindo luz: eu.
Era este o programa do ritual: que, devido ao som das balas, todas as luzes de pirilampo fossem desaparecendo (sim, dizia Dalí: os pirilampos também têm medo, quem não tem medo?) até que ficasse uma única luz: a produzida por Dalí. Depois, livres de qualquer competição, macho e fêmea teriam como prémio uma rápida mas importante cópula nocturna.
Porém, Dalí naquela noite quis ir mais longe.
O amor dos dois havia sido posto em causa várias vezes nos últimos tempos. Aquele era por isso, para Dalí, um jogo decisivo. Tratava-se de correr um risco a sério, como um pirilampo macho que tivesse tanto desejo de acasalar que, mesmo pressentindo a presença de animais com vontade de fazer de si um banquete, mesmo assim então emitiria luz forte e repetidas vozes para conseguir seduzir a sua fêmea.
O que fez então Dalí? Não ligou a lanterna e mantendo-se na mesma posição, deitado de cabeça para cima e com os braços cruzados num gesto religioso, abriu muito os olhos, abriu imenso os olhos pois estava certo de que o branco do seu globo ocular emitiria, através da noite, uma luz tal que Gala, de imediato, o localizaria.
Não havia então, no campo nocturno, mais nenhuma fonte de luz que não as luzes intermitentes dos pirilampos e a luz, acreditava Dalí, que a parte branca dos seus olhos emitia.
Duas, três, quatro, dez balas no total, foram disparadas por Gala naquela noite. Os pirilampos por certo nada percebiam daquele jogo perigoso que se desenrolava entre um macho e uma fêmea humanos, no entanto as balas eram eficazes e os pirilampos machos deixavam de emitir luz, afastando-se ou calando-se (por assim dizer).
Dalí por seu turno, embora com os seus longos bigodes erguidos na ponta que, naquela posição, lhe provocavam uma leve comichão na face, mantinha concentração absoluta – como se estivesse morto, mas respirasse ainda.
Mantinha-se em silêncio, com os olhos muito abertos à espera que a sua fêmea o localizasse pela luz constante que produzia.
O grande perigo era se um pirilampo tivesse a má ideia de emitir luz perto do sítio onde ele estava. Se tal acontecesse, Gala poderia disparar nessa direcção.
Mas Dalí confiava no amor entre os dois. E estava certo de que uma fêmea, mesmo com aquelas más condições de visibilidade, não dispararia sobre o seu macho.
Dalí diga-se, não acreditava apenas que o amor entre os dois tinha bases bem visíveis – como a luz que o branco dos seus olhos emitia na noite -, acreditava estar ainda ligado a Gala através dos elementos psíquicos, bem mais misteriosos. Dalí estava certo de que, devido á ligação psíquica entre as duas cabeças do casal, Gala o encontraria em qualquer ponto do mundo, sem qualquer indicação racional ou ajuda científica: - Gala nunca poderá fugir de Dalí – dizia ele, por vezes, arredondando cada palavra. – E Dalí nunca poderá fugir de Gala.
E nessas alturas repetia, alto, com grandiloquência, utilizando estranhas associações de palavras:
- Pela cabeça psíquica de Dalí, gala será localizada em qualquer parte do mundo. Pela cabeça psíquica de Gala, Dalí será também encontrado em qualquer parte do mundo.
Acreditava pois na ligação indestrutível das suas cabeças Psíquicas e, por isso, naquela noite, deitado num enorme campo às escuras, nesse largo Campo dos Pirilampos, Dalí sabia que, se Gala disparasse na sua direcção, o faria de forma intencional – e isso sim, provaria que o amor de Gala por ele havia terminado. Se Gala me matar… - pensava Dalí, repetindo, como tanto gostava, o óbvio e ao repeti-lo fazendo do óbvio uma declaração extraordinária -… Se Gala me matar é porque já não me ama.
E Dalí, naquele preciso instante, deitado e totalmente imóvel, sentindo já a humidade das ervas passar para a roupa e para todo seu corpo, pensava, como que rezando:
- Dalí sabe sempre onde está Gala. Gala sabe sempre onde está Dalí.
Mas, de facto, se há poucas horas fora Dalí a perguntar – Onde está Gala? -, Agora, em plena noite, no Campo dos Pirilampos, campo deserto e afastado de todo o vestígio de civilização, é Gala que, segurando uma arma e disparando para eliminar os outros machos, pergunta: Onde está Dalí?
E, por uns segundos, naquela noite, tanto Dalí como Gala duvidam do seu amor. Dalí, sempre imóvel, em silêncio, deitado sobre a erva, pensa: se nem a minha cabeça psíquica nem a cor branca dos meus olhos é suficiente para Gala me localizar, então algo entre nós os dois está desfeito. E Gala, por seu turno, continuando a avançar pelo campo com a sua espingarda, pensa: se não localizo a luz de Dalí no Campo dos Pirilampos, então é a altura de partir.
Mas, subitamente, uma nova luz se acende em pleno campo. Gala vê essa luz perfeitamente, embora ela surja a mais de cem metros do sítio onde está. Olha para o chão e nada consegue distinguir. Por instantes Gala prepara a espingarda para disparar, mas de imediato a baixa.
- É Dalí! -,Gala tem certeza.
Ela não viu uma única parte do corpo do seu amado, mas naquela luz que acendia e apagava Gala percebeu um ritmo, um padrão que revelava Dalí.
É o ritmo da luz de Dalí, murmurou Gala.
E eis então chegados ao momento decisivo. Gala aproxima-se daquela fonte de luz. A noite de uma escuridão absoluta nada deixa ver e por isso só a poucos metros Gala vê o que antes pressentia: Dalí deitado, sobre as ervas, com a cabeça virada para cima, os braços cruzados sobre o tronco e uma das mãos a segurar numa lanterna desligada.
Gala baixou a arma. Eliminara todos os machos, restava o seu – pronto para o prémio prometido.
Dalí não se mexeu, baixou e levantou as pálpebras mais duas vezes. Fora dessa forma que ele há pouco produzira a luz intermitente decisiva: abrindo e fechando os olhos.
Quando Gala se aproximou, Dalí disse, maravilhado consigo mesmo:
- Que luz, que luz fantástica provoca o branco dos meus olhos!
- Sim, que luz perfeita, querido Dalí – murmurou ainda Gala, antes de deixar o seu corpo pousar sobre o mais estranho macho que já conhecera no Campo dos Pirilampos.

Fonte: Revista Visão
Texto/Autor: Gonçalo M. Tavares
Foto: Yevegenia Nayberg /re-searcher.com
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