terça-feira, 26 de junho de 2018

O Chiquinho


Num quarto andar da Rua de Latino Coelho vive alegre e satisfeito, na sua gaiola, o «Chiquinho», lindo e manso periquito. Tem o peito de cor azul, asas cinzentas mescladas de branco, penas alvas e aveludadas na cabeça, e, por baixo do bico, ostenta seis pintas também azuis, sem esquecer a cauda, que possui tons de safira mordida por feixes de luz.
O «Chiquinho» não é um periquito vulgar: adorando a gaiola, onde saltita, brinca e fala, atreve-se a vir até ao ombro dos donos; aprecia o miolo de pão embebido em café com leite, à hora do pequeno almoço; delicia-se com a frescura das alfaces e o sabor agradável dos pêssegos; e, empoleirado nas mãos das pessoas amigas, os seus olhos minúsculos e pretos, muito luminosos e inocentes, enchem-se de ternura. Não tem medo de espécie alguma: supõe que toda a gente, que o afaga e acarinha, aprendeu os ensinamentos da alma de S. Francisco de Assis. Só há uma coisa que o amedronta – o frio do inverno, e, por isso, a sua gaiola, em tal quadra do ano, está protegida com tiras de lã. Aos domingos, quando a família se reúne para almoçar, o «Chiquinho» sacode as penas, pedindo assim que lhe abram a porta da gaiola. É vê-lo então: contentíssimo, considera a mesa propriedade sua, onde Deus espalha a fartura, para que ele possa debicar côdeas de pão, bagos de arroz e tudo o que mais lhe oferecerem. Mete-se nos copos ainda humedecidos pelo vinho, e, com a língua grossa e escura, lambe o vidro em busca de gotas do precioso líquido, que o fascina e encanta. Se lhe fosse permitido, «Chiquinho» gostaria de se embriagar em completa liberdade.
Se o mercúrio do termómetro baixa, logo ele prefere a gaiola às brincadeiras que se lhe proporcionam; se sai do poleiro, ultrapassando a portinhola aberta, procura, junto dos lábios dos donos, o bafo morno, que o aquece e reanima.
«Chiquinho» fala extraordinariamente bem, como simples periquito que é. Se há sol e barulho em dicção claríssima diz numa conversa quase seguida: «Meu menino», «Chiquinho pequenino», «Estás bonzinho?», «Da cá um beijinho», «Como está, seu Chiquinho?», «Vá dormir!». Quando o fazem zangar, exclama: «Ai, ai, ai!». Se quer chamar alguém, ouve-se-lhe um nítido e engraçado «Psiu!».
Calcula com maravilhosa exactidão a hora em que o dono volta do emprego, e, minutos antes, trila duas vezes e sacode as penas com frenesi. Quando este chega, saltita na gaiola como a querer saudá-lo em ímpetos de grata amizade.
Parece extasiar-se com a música, sempre por ele escutada atentamente através da telefonia e, dotado de óptima memória, procura imitar os sons que mais lhe agradam. Todo se alegra diante de um espelho, e, nesses instantes de felicidade, tagarela e tagarela, que é mesmo regalo dos olhos e do espírito observá-lo em plena loquenda.
«Chiquinho», periquito lindo e meigo, tem direito a possuir uma «biografia», e eis-nos a exalçar o seu modesto viver, por entre os carinhos duma família que o admira e adora.

Fonte: Almanaque Diário de Notícias (1954)
Texto/Autor: Desconhecido
Foto da revista
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