No Alto Minho tentando dar
forma a um livro, isto é riscando quase tudo. O que ficará, como ficará? Parte
do meu sangue vem dessa Província, anda no verde dos campos, nas casas, nas
travessas, na chuva que cai agora, mansa, vertical, quase doce, íntima. O pai
do avô do meu avô era um camponês muito pobre da Povoa do Lanhoso, de Darque,
que se chamava Antunes. Farto de roer pedras meteu o filho de doze anos num
veleiro para o Brasil, sozinho, esperançoso que a sorte da criança melhorasse.
Imagino um garoto no Rio de Janeiro, sem conhecer ninguém, sem um tostão, sem
sítio onde ficar. Lá se aguentou nem sei como, acabou por emigrar para a
Amazónia. Chamava-se Bernardo António Antunes. Trabalhou em lojas que vendiam
material para os seringais e, como devia ter olho, a sua sorte foi mudando.
Olho e se calhar outras características que não me agradam porque ninguém
enriquece de maneira honesta. A partir de certa altura, morando em Belém do
Pará, ei-lo dono de terras e borracha. Acabou cheio de taco e visconde e, que
se saiba, não tornou a Portugal. Mandava engomar a roupa em Paris. Vivia como
um nababo. A chuva continua, ainda doce, lenta. Se o Camilo o apanhasse
chamava-lhe um figo, ele que adorava brasileiros. Não apanhou. Apanhei eu uns
restos do seu sangue nas minhas veias. À volta da casa onde estou, brincos de
princesa, hortênsias. O meu bisavô herdou a maçaroca e casou-se com uma senhora
judia chamada Leopoldina Lobo. Nessa época havia no Brasil Leopoldinas a dar
com um pau em honra da Imperatriz. Explicaram-me em Jerusalém, ou seja
explicou-me um velhote sábio, que passou anos nos campos de concentração, que
os Lobos fugiram às fogueiras daqui, há muito tempo, e após várias peripécias
foram ganhar raízes para outo lado do mar. O meu avô, parecidíssimo com a mãe,
tinha uma cara de semita que não enganava. Uns restos de sangue dela nas minhas
veias igualmente, se calhar os nazis arranjavam-me um fato ás listras, sei lá.
Meu Deus a quantidade de acasos de que sou feito, de que somos feitos. Ando há
anos a jurar a mim mesmo que hei-de ir à Póvoa de Lanhoso, cheirar-me nas
esquinas. Ainda não fui, vou adiando. Penso
- Para o ano sem falta
e, recuo embaraçado sei lá com
quê, salmão que hesita em subir o rio para morrer. Talvez se mantenham por lá
uns primos Antunes, do mesmo sangue de pobre que é o meu. Foi-se refinando,
claro, mas visto de perto continua o mesmo. E depois Antunes, caramba, é feio
como o caneco, com o Lobo sempre disfarça um bocadinho mas as minhas origens,
para onde quer que olhe, são mais ou menos todas assim. E nobreza, felizmente,
não possuo nenhuma. Venho, por qualquer costado que me olhe, do povo, oque,
secretamente, me agrada. A chuva, os brincos de princesa, as hortênsias. A
minha família não pesa na história, não conta, feita de gente do Minho, do
Algarve, de sei lá de onde, mais uns genes estrangeiros que me fazem sentir
mais português ainda. Aqui perto, o mar: uma única onda, sempre a mesma, a que
levou o menino Antunes ao Brasil e dura ainda. Casas de granito, ruazinhas, a
alegria com que o sol chega. Estes cheiros, capelinhas perdidas no meio da
serra. Apetece-me tanto deixar Lisboa, o sítio feio onde moro, habitar longe,
sei lá onde, céu aberto, calor:
- Quando acabares o livro o que
vais fazer?
Quando acabar o livro escrevo
outro. Se for capaz. Se ainda existirem livros em mim, a gente não sabe. Se não
existirem sento-me no chão, a contar os dedos: contando-os muitas vezes começam
a ser menos. Quantos tenho? Na mão esquerda cinco, na direita não vi. O senhor
Ernesto trouxe cerejas amarelas num cestinho: tão sério atrás dos óculos. Os
mortos andam por aí, há dias estive com eles, corpo contra corpo, feições
misturadas. Não sei qual de nós falou mais, eram vários, eu só um. Eu só um?
Quantos encontra em mim, mãe? É melhor não perguntar, deve achar que eu só um,
as mães acham sempre que a gente só um. O americano perguntava: O que é feito
da tua irmã gémea que abandonaste ao nascer? O que lhe fiz de facto? Tenho-a
procurado a vida inteira, em vão. Desistiu de mim, da minha falta de amor,
foi-se embora. Se me pedirem contas, e hão-de pedir-me contas
- O que fizeste da tua irmã
gémea que abandonaste ao nascer?
O que lhe respondo? Ninguém lhe
deu um nome que tenho de o encontrar dentro de mim. Encontrar não: eu sei,
finjo que não sei mas sei. Qual de nós dois escreve isto? Ela? Eu? Que homem
não abandonou a sua irmã gémea ao nascer? A chuva interrompeu-se uns minutos,
voltou: não andes por ai à chuva, mana, volta para dentro, de cabelo molhado,
tão magra. Comprei este bloco numa papelaria minúscula: um euro. Perguntei
- Quanto custa?
Responderam-me
- Um euro
E fiquei parvo. Um euro com
tanto papel dentro, já escrito, basta passar o bico da esferográfica por cima
das palavras e, portanto, isto que escrevo já ca estava. Só se escreve o que já
está nas páginas desde o princípio, à espera, não criamos nada. E, na minha
ideia, foi a minha irmã gémea quem disse isto para mim. Se olharem com atenção
vêem-na espreitar por cima do meu ombro. Que estranho: eu á sua procura e ela
aqui, comigo desde sempre. Não voltou: não me abandonou apenas. Fui eu que
deixei de olhar para ela, esteve sempre à minha espera. Passa a tua mão na
minha cabeça mana. A tua mão na minha cabeça durante muito tempo. Até eu adormecer,
por exemplo, para que não volte a acordar.
Fonte: Revista Visão
Texto/Autor: António Lobo
Antunes
Foto da Revista
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