Leonel Badanas, o bombeiro, acaba de vestir a
farda cheia de botões amarelos. Está diante do espelho e põe de várias maneiras
o rebrilhante capacete. Vira-se para um lado e para o outro. Torna a mudar-lhe
a posição sem se decidir por nenhuma. Mas, como não tem pressa, teima em pôr de
acôrdo aquêle extraordinário chapéu com a alevantada e grave expressão do
rosto.
Por fim, já com os músculos
da cara doridos, sai, muito embora não vá plenamente satisfeito com os
resultados do ensaio.
Na rua alarga um passo de ginasta e adianta o
peito; a espinha flete em arco pondo em grande relêvo as nádegas magras. Apesar
disso, Leonel Badanas sacode os braços com arrogância. Tem assim uns longes de
galo, de asas meio-abertas, chispando raios de Sol da luzidia crista.
De repente, ao voltar a esquina, tropeça numa
súbita idéia e tido aquilo se desfaz. Equilibra-se a custo. Fica uma farda
amarrotada; lá dentro, um homenzinho mirrado com uma enorme campânula amarela
na cabeça.
Desalentado, o bombeiro retrocede. Empurra a
porta e grita, levantando, lentamente as mãos:
- Onde está a minha medalha?!
Sai do quarto uma mulher de feição apagada e
receosa:
- Estive a areá-la… Esqueci-me…
- Vai busca-la, mulher!
«Que irritação! Por um pouco entrava no largo
sem a medalha!... No largo, onde está toda a gente de Vila Boa à espera da
chegada dos corredores!...». E, mesmo agora, enquanto a mulher lhe cose na
farda a fitinha que segura a medalha, êle a descompõe.
- Olha se eu me esquecesse, hem?!... –
repete a cada instante.
Pouco depois sai. Rua fora, caminha de novo num
passo largo e sêco; peito arqueado, nádegas saídas.
Dependurada no peito, a medalhinha branca
agita-se em movimentos desordenados. E reluz ao Sol, num alegre desafio com o
capacete.
///
Esta medalha ganhou-a Badanas no Inverno último.
Os bombeiros formaram em parada, e o próprio comandante o condecorou. O facto
que originaria tal prémio dera-se uns quinze dias antes.
Por um sol-pôsto frio, certo mendigo que ninguém
conhecia em Vila Boa chegou ao largo e foi parar junto de uma das vendas. Os
ossos saiam-lhe ao redor dos olhos tentando em vão esticar a pele enrugada e
escura. O resto era uma confusão de pelos de côr indecisa que lhe tapavam a
bôca e o peito. E, no meio das barbas, no fundo dos ossos brilhavam dois
olhinhos negros e fixos.
Com mêdo que o enxotassem, como se faz aos cães,
não se atreveu a entrar. Sòmente se encolheu ainda mais. Quási tocava com a
barba nos joelhos, como se assim, miudinho e sumido, a nortada que corria pela
planície não atentasse tanto contra a pele arroxeada que os farrapos destapavam
a cada momento.
Em dada altura ergueu a mão que segurava a vara
e emitiu uns sons ininteligíveis para um homem que se aproximara. O homem
abanou a cabeça negando esmola.
Mas não era esmola que o velho pedia naquele momento.
A única dificuldade estava em encontrar as palavras. Os olhos tinham a mesma
negra fixidez, só as rugas cada vez mais cavadas ao redor denunciavam o
doloroso esforço do cérebro. Conseguiu, por fim, juntar umas palavras. Acaso o
homem sabia onde morava o Chico Rata? O homem apontou para um casebre já fora
da vila, próximo da estrada que saia do largo.
Arrastou-se, pois aquilo não era bem andar. Ia
todo em arco, com a vara numa das mãos e a outra, entre as pernas, premendo o
intestino contra a verilha. Era quebrado. Em frente do casebre, os pêlos da
barba mexeram-se, por debaixo do nariz, ao sôpro de uma palavra:
- Chico!
Dentro ninguém devia ter ouvido, tão fraca era a
voz. Só muito depois apareceu uma mulher. Trazia um fogareiro que colocou no
chão de modo a que o vento ajudasse a atear o lume. Feito isto voltou-se para o
velho e disse:
- Aqui é que vossemecê vem pedir?
Agachou-se ajeitando os pedacitos de madeira que
teimavam em não arder:
- Vá à vila, tiozinho. Lá é que lhe podem dar
esmola. Mas - acrescentou após breve silêncio – hoje, não pense nisso; só ao
sábado é que dão.
Montado numa bicicleta, um rapaz galgava a
subida em direcção ao casebre. Saltou para o chão e foi encostar a máquina na
parede. Examinou o velho. De súbito, o rosto do rapaz endureceu:
- Com que então, é você!...
A mulher ergueu-se. Frente um ao outro, os dois
homens olhavam-se. O mendigo continua curvado e, como adiantara o queixo, a
nortada brincava-lhe com as barbas.
- Sempre acabou por me descobrir, hem? – gritou
o rapaz dando um passo – Diga lá o que quere!
O velho recuou. Aquela voz irritada
tornara-se-lhe agora compreensível. O rapaz oscilava a cabeça a um lado e a
outro como para conter as frases de ira que o atormentavam. Mas acabou por
soltá-las:
- Quere casa e mesa, não?
Apontava para o casebre:
- Isto não é hotel! Ponha-se ao largo! Está
velho? Que tenho eu com isso? Comer não arranjo eu todos os dias!
Foi à mulher e empurrou-a para dentro da porta.
Voltou-se, erguendo os braços para o velho:
- E eu? Quando eu era pequeno, que fez você por
mim? Que me deu você? Nem a ponta de um corno! Em que é que você é meu pai?
Diga lá!
O mendigo foi recuando. E, sem tirar a mão de
entre as pernas, cauteloso pela descida cheia de pedras que o atalho fazia até
à estrada, tomou a direcção da vila. Atravessou-a sempre de olhar fixo. Tempo
depois, desaparecia, ao longe, enrolado no vento e na noite.
Voltou no outro dia. Bateu de porta em porta.
Como não era sábado, foi nula tôda a caminhada daquela manhã. Pelo meio-dia,
caiu rente à parede da venda do largo.
Ajeitou-se melhor e permaneceu por muito tempo
na mesma posição. Dir-se-iam de cego os olhos que a fome tornara baços. Assim a
mesma quietude por todo o corpo como se a imobilidade da morte lhe houvesse
tocado o coração. Devia ter passado uma hora quando o mendigo se ergueu.
Deixava, abandonados no chão, os seus únicos bens: a vara e o saco vazio. E, de
braços abertos, caminhava como os ébrios quando vão, desolados, de cabeça
perdida.
Mas, junto ao bocal do pôço que há a um canto do
largo, a dôr travou os pés do velho. Cuidadosamente, ajeitou o intestino, entre
as pernas. Encostou-se ao bocal do pôço; com o braço livre puxou o corpo, e
tombou para dentro.
A pancada na água ouviu-se na venda. Leonel
Badanas foi o primeiro a chegar. Debruçou-se e, voltando-se para os que vinham
a correr, gritou alegremente:
- Teve sorte, o raio do velho!
Os outros rodeavam o poço. O mendigo estava a
uns dois metros do bocal, encostado às pedras esboroadas, ansiado, de bôca
aberta como para vomitar. A água dava-lhe pelos ombros.
Então todos compreenderam a frase do Badanas. O
velho caíra no estrado de madeira que apanha metade do círculo do pôço, um
pouco abaixo do nível da água, e serve para os trabalhos de limpesa quando, no verão,
a nascente enfraquece.
Dirigindo o salvamento, Leonel Badanas gritava
ordens. Veio uma escada; desceram-na até ao estrado, e o bombeiro preparava-se
para saltar quando lhe ocorreu uma idéia. Para quê molhar-se com um frio
daqueles? E, depois, se a escada se partisse com o pêso de dois? E , seguindo o
curso do pensamento, ordenou ao mendigo:
- Sobe, maroto!
A cabeça do velho desapareceu debaixo de água.
Cresceu a espectativa em volta do bocal. Badanas ainda subiu para a escada, mas
de novo parou dominado pela mesma idéia. Nêsse momento, reaparecia a cabeça do
mendigo. A água escorria-lhe da bôca e das barbas.
Badanas aproveitou a altura:
- Sobe, malandro, se não vou lá abaixo!
Reanimado o mendigo voltou a mergulhar. Queria
morrer. No entanto, já debaixo de água, no último momento, não conseguia evitar
aquele retezamento de músculos que lhe esticava imperiosamente o corpo.
Respirava de novo o bom ar da vida, e o primeiro movimento era a mão que o
fazia introduzindo-lhe entre as pernas, compondo a quebradura.
Leonel Badanas começou a insultá-lo com
obscenidades. Mas a cena repetia-se sem resultado para qualquer deles.
Até que o bombeiro teve outra ideia. Correu à
venda, voltando com uma comprida vara. Intimou o mendigo a subir e, como êste
se não mexesse, aplicou-lhe uma varada na cabeça.
- Sobes ou mato-te, malandro!
Agora as pancadas sucediam-se. O velho metia a
cabeça debaixo de água: vinha a aflição da asfixia; erguia-se cá fora
esperava-o uma varada.
Por fim, espicaçado pela vara, ponteira e firme
nas mãos de Leonel Badanas, de cabeça dorida, o velho subiu a escada.
Levaram-no à Câmara. Apareceu gente. O
administrador adiantou-se e começou a falar ao bombeiro no seu modo carrancudo
de sempre. Nos olhos do velho, sentado nos degraus da escada. De-certo, iam
castigar aquêle maldito que o não deixara aquietar-se de vez.
Mas aquilo acabou de um modo diferente. O
administrador apertava a mão do bombeiro. As palvras já o mendigo não as
compreendeu.
- Vai então ganhar a medalha, hem! – dizia o
administrador. – Merece-a; salvou um homem.
Assim foi. Tinha muito pouco tempo a corporação
dos bombeiros, sequer um incêndio havia ainda na sua história. De modo nenhum
deixaria passar aquela oportunidade que ia justificar os seus préstimos. Estava
ali o comandante tomando nota do caso. Perante isso, Leonel badanas baixou os
olhos, cheio da natural modéstia dos homens decididos.
Nesse momento, um homem erguia o mendigo. Era o
carcereiro que o ia meter na cadeia.
Foi pôsto na rua dois dias depois. Ainda ficou
largo tempo em frente ao edifício, com os olhos pousados nas grades do portão.
Tinham-lhe dado de comer enquanto lá estivera.
///
Desde o meio da rua, Leonel Badanas encara a
multidão, de tal modo que parece ser êle o vencedor da corrida. No entanto, ao
entrar no largo, todo o seu optimismo murcha. Ninguém repara nêle.
Um outro propósito levou para ali a população de
Vila Boa, dividida entre dois partidos desde há um mês. Metade teima que só
Luiz Paderne vencerá; a outra metade dá a mesma vitória a Chico Rata.
Vila Boa – Altinho – Vale Sol-pôsto – Ermidas –
Vila Boa, um circuito de cento e tal quilómetros, é o melhor número da festa
organizada por um grupo de senhoras, a favor das «Florinhas da Rua».
A gente –bem da vila tem o seu favorito, Luiz
Paderne, que há três anos ganha a temível prova. É filho do dono da Mercantil
do Sul e atleta do Clube Vilaboense. Um desportista.
O resto da população, a camada baixa, lançou
êste ano o homem capaz de vingar as três afrontosas derrotas: Chico Rata, o que
não impede que seja mais conhecido pelo «Bela Sardinha», ou simplesmente
«Sardinha». O seu ofício é ir todos os dias à Costa e voltar com um caixote
cheio de peixe, que vende na Vila e pelas herdades próximas. Daí o apelido.
Como usa a bicicleta para se transportar, mais a caixa, colocada sobre a roda
de trás, os directores do Glória ou Morte Foot-ball Clube – camisola verde,
calção negro e inimigo desde sempre do Clube Vilaboense – fizeram-no sócio à
última hora. E aí vai o Bela Sardinha, entre um grupo de garridas camisolas,
estrada fora. Um peixeiro.
Agora no largo, a multidão agita-se, procurando
melhores lugares. Mas os adeptos do Glória ou Morte estão inquietos. Pelo
resultado da prova e por uma notícia que um carreiro participara no Pôsto da
Guarda. O homem encontrara um velho afogado na ribeira de Almancil. O velho era
aquele mendigo que Leonel Badanas salvara no inverno anterior. Então
concordaram todos em nada dizer ao Chico Rata, caso êle ganhasse a corrida.
Era tempo. Gritos ecoaram no princípio da
estrada. E a menina que está na varanda volve os olhos lá de dentro do sonho em
que permanecia absorta. Será que tem estado toda a tarde pensando no príncipe
encantado que nunca mais chega? E, ao reboarem as palmas, quebram-se os últimos
vestígios do sonho que enublava aqueles grandes olhos.
Não é Luiz Paderne aquela estranha figura que
galga a subida que vem para o largo… É o Chico Rata, exausto, gingando como
bêbedo, sobre a bicicleta, a cara sumida, empapada no pó onde as bagas de suor
abrem sulcos negros. Eis a Bela Sardinha de bôca aberta num esgar ofegante. E,
decerto, há qualquer coisa espantosa no vago ponto que os seus olhos fitam
desorbitados. Estica o queixo como se lhe fosse fugindo todo o ar respirável.
Ou que, perto dos lábios, corresse a frescura, nunca mais alcançada, da água
das fontes quando é Primavera.
Mal passa a meta, arrancam-no da bicicleta. A
camada baixa da vila grita e dá palmas. «Viva o Rata! Viva o Glória ou Morte!».
Mas um berro que se repete domina tudo:
- Dêem de beber ao homem!...
Arrastam-no para a venda. Junto ao balcão bem
seguro por debaixo dos braços, o vencedor bebe duas cervejas, uma após outra.
E, alastrava a conversa, quando um sujeito,
decerto do Clube Vilaboense, toca no ombro do ciclista e diz:
- Rata, o teu pai morreu. Foi esta manhã,
afogado na ribeira de Almancil.
O rapaz não compreendeu logo. No meio do mal
estar dos directores do Glória ou Morte, o sujeito repete a frase. Mas a
alegria volta a todos os rôstos; o Rata, encolhendo os ombros, respondera:
- Quero lá saber. Morreu afogado – morreu
lavado.
Fonte: Revista Ler e Crer n.º 3 (Julho 1945)
Texto/Autor: Manuel da Fonseca
Fotos da Revista
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