Tinha sido um verdadeiro
sufoco, ela na rua e de repente a pensar: “esqueci-me das chaves e do telemóvel
em casa”.
A quem pedir ajuda, e como?
Mesmo com cabines telefónicas nos passeios e moedas nos bolsos, desde que se
inventaram os telemóveis que ela nunca mais soube nenhum número de cor, está
tudo na memória, ela a viver pela memória de uma máquina, ao que isto chegou.
Mas foi sufoco breve,
felizmente não estava longe de casa quando deu pela falta, e pôde voltar atrás
e entrar no café, que desde sempre guarda uma cópia das suas chaves para uma
qualquer emergência. Como esta.
Ainda bebeu uma tranquila bica
antes de voltar a casa para buscar o que esquecera, meditando, como sempre em
ocasiões semelhantes, na dependência em que todos vivemos de máquinas e tralhas
afins.
Vem-lhe à memória o tempo
longínquo em que o primeiro telefone móvel entrara lá em casa. Uma maravilha da
técnica. Tirava-se do descanso e podia-se levar pela casa toda, e falar
estiraçado na cama, ou na sala, ou na cozinha, enquanto se mexia a sopa.
Tinha sido o filho quem mais
vibrara com o objecto. Agora podia enfiar-se no quarto, sem dar cavaco a
ninguém, e passar horas com as suas diversas namoradas.
Preocupava-a aquele filho, sem
nunca pegar num livro, naquela casa onde eles estavam por todo o lado e onde
ninguém podia passar sem eles. Ninguém, menos ele, claro, que pelos vistos
passava mesmo muito bem, porque a verdade é que tinha boas notas e não
chumbava. Mas ler não era o seu passatempo favorito. Por isso lembrara-se do ar
de espanto que fez no dia em que ele lhe perguntou:
- Mãe, onde estão ‘As Naus’?
Nem percebera
- Onde está o quê?
- ‘As Naus’, mãe. Aquele livro
do Lobo Antunes.
Não quis mostrar demasiado o
seu espanto, o rapaz ainda era capaz de se arrepender, e tirou-o da prateleira.
O filho pegou no livro, enfiou-se pelo quarto, fechou a porta e lá ficou.
Nos dias seguintes ‘As Naus’ lá
continuavam na mesa-de-cabeceira. Um dia achou por bem voltar a pô-lo na
prateleira.
À noite o filho, meio zangado:
- Mãe, qu’é das ‘Naus’?
Pelos vistos a leitura do
romance entusiasmava-o.
Um dia arriscou:
- Estás a gostar das ‘Naus’?
Foi a vez de ele a olhar
espantado.
- Das ‘Naus’?
- Sim, do romance do Lobo
Antunes.
- Ah!!
Foi um enorme “Ah”, que se
devia ter ouvido pela casa toda.
Depois foi buscar o livro e
abri-o na primeira página, onde se viam uns números escritos a lápis.
- Tás a ver , mãe… É que há
dias, quando tu andavas a fazer a arrumação dos livros, a Teresa ligou e eu
precisava de tomar nota do número do telefone dela. E isto era a única coisa
que eu tinha à mão. Como nunca sei o telefone dela, preciso sempre de ver aqui.
Ainda pensou em dar-lhe uma
agenda – mas desistiu. Pegar num livro era bem melhor. Até podia ser que ele se
entusiasmasse e passasse da primeira
página.
Como de resto veio a acontecer,
não por causa de ‘As Naus’ mas por causa de uma namorada que lhe disse:
- Ou tu lês o que eu leio, ou
nada feito.
Casaram, são muito felizes, têm
5 filhos.
(‘As Naus’ continuam com o
número de telefone escrito a lápis, já um bocado sumido, que os anos não
perdoam.)
Fonte. Revista Activa
Texto/Autor: Alice Vieira
Foto da Net
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